sexta-feira, março 05, 2004

Quem és?


Não é fácil falar em civilizações hoje em dia. Ou melhor, não é, acima de tudo, politicamente correcto fazê-lo. Desde que Samuel Huntington publicou, no Verão de 1993, o famoso artigo em que lhes associava a palavra “choque” que a discussão em torno destas entidades milenares tem sido encarniçada. A conjuntura política internacional (Afeganistão, Israel/Palestina, Iraque, 11 de Setembro, Coreia do Norte, etc.) não é, obviamente, alheia ao referido entusiasmo.
Utilizando esta grelha de leitura como alternativa possível face às críticas dirigidas a uma análise com base puramente no Estado‑Nação, proponho um breve olhar sobre a lógica das civilizações na óptica do “proponente-regulador” Ocidental.
Olhando para o Mundo, parece claro que a chamada Civilização Ocidental não forma um todo coeso e muito menos indistinto, podendo ser dividida, por exemplo, entre europeus e norte‑americanos e entre católicos e protestantes. Está relativamente próxima de judeus (com poder muito relevante não só em Israel mas também nos EUA, no Reino Unido e na Holanda) e de ortodoxos (este últimos divididos entre gregos e eslavos). Tal como acontece na maioria das religiões, também os católicos podem ser divididos entre progressistas e integristas, sendo igualmente de realçar a crescente importância dos Evangélicos em países como o Brasil e os EUA.
O Ocidente “gere” a sua relação com ortodoxos fundamentalmente através da segurança (e.g. alargamento da NATO), da integração económico-política (e.g. UE) e do Investimento (e.g. boom dos fluxos de Investimento Directo Estrangeiro (IDE) dos anos 90). É também o IDE que mais aproxima o Ocidente e o mundo confuciano com uma percepção global de que o gigante adormecido Chinês está a acordar muito rapidamente (veremos se as reservas internacionais de hidrocarbonetos o permitirão). O mesmo sucede entre Índia hindu e Ocidente (e.g. importância do IDE na Índia no apaziguar das tensões com o Paquistão), entre Japão e Ocidente (com a diferença central de que o Japão partilha com o Ocidente as grandes decisões de regulação económica e financeira global) e entre América Latina e Ocidente (a ALCA é apenas uma das tentativas).
África, essa, parece continuar a estar um tanto esquecida sendo no entanto de acompanhar a emergência de alguns países como produtores significativos de petróleo (África Ocidental) e o papel geopolítico desempenhado por países africanos pertencentes à civilização islâmica (como a Líbia, o Egipto e o Sudão). Esta última civilização, no centro do furacão geopolítico mais recente, está profundamente dividida. Alguns exemplos: Xiitas vs. Sunitas; Árabes vs. Turcos vs. Malaios vs. Persas. A Turquia faz parte da NATO e é candidata à adesão à UE. A Indonésia é um aliado dos EUA (o mesmo sucede com Marrocos, o Egipto e a Arábia Saudita - embora a relação entre este Estado onde se situam os lugares santos do Islão e os EUA se tenha deteriorado muito desde o 11 de Setembro). O Paquistão é um parceiro (embora “fugidio”). O Iraque está, neste momento, sob controlo de forças dos EUA.
De qualquer forma, parece inegável que a pergunta “Quem és?” substituiu “de que lado estás?”, questão tradicionalmente ligada a conflitos profundamente ideológicos como a Guerra Civil de Espanha, a Guerra Fria ou mesmo a 2ª Guerra Mundial. O problema é que “Quem és?” sofre de uma rigidez (e, desta forma, de uma periculosidade) bem mais acentuada...

[2] Ver Boniface, Pascal: “Guerras do Amanhã”, Editorial Inquérito, 2003; Huntington, Samuel P. [et al.]: “O Choque das Civilizações – O debate sobre a tese de Samuel P. Huntington”, Gradiva, 1999; Huntington, Samuel P.: “O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial”, Gradiva, 1999.