sexta-feira, dezembro 27, 2002

Forças Armadas: aproximação a uma racionalidade


Como ficou tragicamente claro com os acontecimentos de 11/9/2001, dificilmente se poderá compreender em profundidade os conflitos através de uma abordagem do contexto internacional apenas do ponto de vista das relações de força entre potências, sendo necessário encontrar uma leitura que tenha em conta as sociedades onde se inserem e as suas dinâmicas próprias e que complete as análises (sempre fundamentais, diga-se) baseadas na natureza dos actores, na intensidade da violência, nos meios empregues, nos objectivos, nas motivações e/ou na relação com o território. A demografia constitui, mais uma vez, um bom exemplo. Os múltiplos fenómenos de pressão demográfica (seja sob formas legais ou ilegais) parecem poder constituir-se como uma nova forma do clássico “caldo instigador da guerra” (demográfico mas também económico, psicológico e, porque não, civilizacional) de que falava Bouthoul, “pai” da polemologia (ciência que estuda a génese e a evolução dos conflitos militares). Pressão, claro está, não só ligada às assimetrias de desenvolvimento, globalmente reconhecidas como um dos principais factores de risco e promotoras de “sociedades dispensáveis” (a que se refere Adriano Moreira), mas sobretudo, na minha perspectiva, às assimetrias de representatividade, caracterizáveis pela incapacidade de civilizações importantes gerarem potências de relevo mundial, formando-se pólos de grande instabilidade que afectam inevitavelmente os países mais ricos e poderosos (instabilidade eventualmente – e paradoxalmente – provocada através da utilização agressiva de tecnologias desenvolvidas nesses mesmos países).
De facto, todo o conflito é, cada vez mais, multidimensional, com o seu sentido a ser vivido sempre de forma diferente pelos actores em presença e sendo inúmeras as interpenetrações não só entre os fenómenos que corporizam e moldam a sociedade contemporânea como também entre esta, os conflitos e as Forças Armadas. É a complexidade de novo em acção e é face a ela (e a elevados níveis de exigência) que se encontra a instituição militar no século XXI, “obrigada”, num contexto de rígidas condições orçamentais, a agilizar os processos de planeamento estratégico e a definir difíceis critérios de prioridades na obtenção de capacidades e no emprego sustentado das forças nacionais nos vários teatros de operações. Todo este contexto de “mudança” que coloca renovados desafios ao funcionamento das instituições responsáveis pela gestão da violência colectiva, “feito” de fracturas tecnológicas, alterações no contexto geopolítico e geoestratégico, novos tipos de ameaças à segurança colectiva, desenvolvimento cada vez mais frequente de missões de paz, reconversão das estruturas internacionais de defesa, mudanças no próprio Estado, mudanças profundas na sociedade e nos elos entre os indivíduos, etc., não invalida, no entanto, algumas permanências, ligadas não só a valores e regras da instituição militar e à formação de cada militar mas sobretudo, e alargando o objecto de análise, às duas finalidades fundamentais de qualquer unidade política (que contextualiza e determina, entre outros, os objectivos das instituições militares): sobrevivência/manutenção da soberania e progresso/bem‑estar.

sexta-feira, dezembro 20, 2002

Uma Europa (ainda?) medieval


O tema “natural” desta semana seria o Conselho Europeu de Copenhaga que reuniu os Chefes de Estado e de Governo dos quinze Estados-Membros (EM’s) da União Europeia (UE) e onde se discutiram temas tão importantes como o alargamento da UE a dez novos Estados, a ilha de Chipre, a adesão de Roménia e Bulgária e a marcação de uma data para o início das negociações com a Turquia. A delegação portuguesa, pelo que dizem as notícias, fez finca-pé no aumento das quotas leiteiras para o nosso país. Mas hoje não vou tratar estas matérias. Prefiro, em época natalícia, falar de uma outra UE (bem mais divertida, diga-se), relatando-vos uma pequena história que se passou com uma amiga minha que, financiada e seleccionada pelo Estado português, resolveu, depois da licenciatura, aprofundar os seus conhecimentos das matérias europeias numa das mais conceituadas instituições de ensino nesta área: o Colégio da Europa em Bruges. Obtido o canudo e tendo optado por voltar para Portugal (onde é que já se viu tal opção?), necessitou, a dada altura, que uma Universidade Portuguesa reconhecesse a veracidade do diploma (não o nível ou o grau, mas apenas que o diploma era verdadeiro). A história que me contou (pedindo à minha amiga, desde já, desculpa por alguma omissão) foi mais ou menos esta: «O meu objectivo era pedir à Universidade X o reconhecimento do MA (Master of Arts) que obtive em Bruges. (1) Comecei por conversar com o Vice-Reitor da Universidade em causa e com um Professor da Faculdade encarregue do reconhecimento para saber se valeria a pena o investimento de tempo e dinheiro, ao que me responderam que, em princípio, não notavam qualquer impedimento de maior. Resolvi então iniciar o processo burocrático. (2) Após várias conversas telefónicas com o Departamento de Assuntos Académicos da Reitoria da Universidade X, desloquei-me ao dito Departamento onde, finalmente, uma funcionária (Sr.ª A) me informou que eu tinha toda a documentação necessária menos a “legalização” do diploma. Perguntei como se faria tal “legalização” ao que me responderam que seria através da apostilha da Convenção de Haia a apor pelos serviços consulares da embaixada portuguesa no país de origem (neste caso, Bélgica); perguntei o que era a “convenção de Haia” ao que me responderam prontamente que não sabiam. (3) Após alguma pesquisa na internet, descobri que se tratava de uma convenção de 1961 e contactei o GDDC (Gabinete de Documentação e Direito Comparado que é o órgão nacional responsável pelas questões relacionadas com a Convenção de Haia de Direito Internacional Privado), tendo sido informado (pela Dr.ª M) que a tal aposição era feita pela Procuradoria‑Geral da República, em Lisboa. Achei estranho, mas....(4) Telefonei para a Procuradoria onde me disseram que não podiam fazer isso, sendo a apostilha da responsabilidade da já mencionada secção consular portuguesa na Bélgica. (5) Voltei a ligar para o GDDC onde a Dr.ª M me disse que tinha percebido mal e que, de facto, era no consulado. (6) Telefonei à Direcção-Geral (DG) dos Assuntos Consulares e Comunidades Portuguesas onde o simpático Gabinete de Atendimento ao Público me informou que estas coisas teriam que ser tratadas na secção consular da Embaixada Portuguesa em Bruxelas; o mesmo Gabinete, no entanto, informou-me que, depois, me deveria deslocar ali para reconhecer a assinatura do cônsul....(7) Já um pouco céptica, telefonei à Direcção Geral dos Assuntos Comunitários do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) (que trata, aliás, dos assuntos relacionados com a selecção e o financiamento dos portugueses que vão para o Colégio da Europa – falei, após algumas tentativas, com a Dr.ª J) na esperança de não ter que me deslocar a Bruxelas, tendo-me sido confirmado, com algum desdém, que “esse problema” teria que ser tratado na secção consular da Embaixada em Bruxelas; (8) Telefonei para a dita Embaixada, onde os serviços consulares me informaram que tal apostilha era aposta (passe a expressão) não por eles mas pelo MNE belga; a seguir, o que eles faziam era atestar a citada aposição da apostilha pelo MNE belga (um sorriso escapou‑me pois lembrei-me que a DG dos Assuntos Consulares me tinha informado que era nessa DG que se procederia ao reconhecimento da assinatura do Sr. Cônsul). Ingénua, tinha o percurso traçado: MNE Belga para a apostilha, Serviços consulares em Bruxelas para reconhecimento da apostilha, DG dos Assuntos Consulares em Lisboa para reconhecimento do reconhecimento da apostilha, reitoria da Universidade X com a prova de que o meu diploma do Colégio da Europa não tinha sido forjado na Praça da Figueira...). (9) Telefonei para a secção académica da reitoria da Universidade X perguntando porque me tinham informado que me deveria dirigir aos serviços consulares portugueses na Bélgica; aí, uma colega da Sr.ª A (a Sr.ª estava doente) mostrou-se surpreendida por não serem os ditos serviços consulares o órgão competente mas logo de seguida referiu que, se o responsável for o MNE belga, por ela, não via inconveniente. (agradeci humildemente). (10) Telefonei para a embaixada belga em Lisboa para perguntar se seria possível tratar do assunto em causa (a tal aposição) sem me deslocar propositadamente a Bruxelas; disseram-me que não. (11) Telefonei para o MNE belga onde, após várias tentativas, consegui falar com o funcionário responsável pelas “legalizações e apostilhas”, o qual me disse que sim, que faziam isso mas que o tal documento (o diploma do Colégio) tinha, antes, que ser autenticado (penso que foi esta a expressão) pelo Burgomestre de Bruges – uma espécie de Presidente da Câmara - ou pelo seu escrivão, tendo o tal senhor responsável pelas “apostilhas” sublinhado que qualquer outra assinatura (que não a do Sr. Burgomestre ou a do Sr. Escrivão) implicaria a não aceitação do dito papel/documento); (dei uma gargalhada pedindo de seguida, educadamente, desculpas...). (12) Algo incrédula, telefonei para o Colégio da Europa onde falei com o responsável pelos Assuntos Académicos (Sr. T) tentando, com alguma dificuldade confesso, explicar-lhe resumidamente a situação. Particularmente difícil foi explicar que eu não pretendia o reconhecimento do grau mas apenas o reconhecimento de que o diploma é verdadeiro (ele perguntou-me várias vezes se eu tinha ou não o meu diploma ao que eu respondi que sim). Pareceu-me nunca ter ouvido falar da história da Convenção de Haia, tendo eu sentido um breve sorriso do outro lado quando lhe falei do “capítulo” do Burgomestre e do escrivão. Disse-me que não sabia se poderia fazer alguma coisa (de que serviria o Colégio assegurar que o seu próprio diploma era verdadeiro...) e que o melhor (e talvez a única hipótese) fosse tentar junto do MNE português (afinal eles participam na selecção e concedem as bolsas para o Colégio). Respondi que já tinha tentado mas que talvez o volte a fazer (talvez falando com uma pessoa diferente – nunca se sabe).»
E é assim. Não me atrevo, obviamente, a fazer qualquer comentário. Bom natal a todos.

sexta-feira, dezembro 06, 2002

Quem vem lá?


O El País da passada terça-feira chamava a atenção para a enorme disparidade de números relativos à população espanhola em 2050 apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Instituto Nacional de Estadística (INE) de Espanha. De facto, enquanto a ONU aponta para o valor de 31.3 milhões de pessoas (uma redução muito significativa da população espanhola), o INE prevê 41 milhões. A diferença, como é natural, refere-se ao mais volátil dos factores demográficos: as migrações. Neste caso específico, a ONU optou por um cenário de contenção (30 000 imigrantes/ano) enquanto o INE incluiu na sua modelização valores bem mais expressivos (205 000/ano).
Este exemplo é bem elucidativo do quão complicada é a modelização dos fluxos migratórios, advindo esta complexidade não só da natureza variada dos fluxos e respectivas motivações (migrações económicas, movimentos de profissionais altamente qualificados, refugiados políticos, etc.) como também da sua susceptibilidade a acontecimentos como guerras ou crises (políticas, humanitárias, económicas, etc.). Quem poderia “modelizar” no seu alcance, por exemplo, a guerra do Kosovo e o seu elevadíssimo número de refugiados?
Mais uma vez, sou daqueles que pensam não ser possível prever a natureza e o volume dos movimentos populacionais futuros com base em simples (ou complexas) projecções, tendências e teorias com base empírica no passado. É quase caso para dizer que, no que toca aos movimentos populacionais, o que a história nos ensina de mais valioso é que a sua complexidade não pode ser esbatida pela concentração da atenção apenas numa das vertentes (ou mesmo em algumas delas) do fenómeno, pois uma outra faceta, eventualmente não considerada, pode ganhar, imprevisivelmente, uma importância inusitada – uma guerra ou a bancarrota de uma economia constituem exemplos bem claros desta ideia.
É aqui que entra a prospectiva estratégica, uma forma de olhar o mundo com o foco no futuro, não o querendo necessariamente prever mas tendo como objectivo central fazer com que determinado indivíduo, organização, região ou país esteja melhor preparado face à complexidade do espaço dos possíveis/dos cenários plausíveis. Em termos demográficos, e não escamoteando, obviamente, a importância da modelização das principais tendências, a prospectiva tenderá a considerar múltiplas hipóteses de evolução para as variáveis (por exemplo, para a imigração), levando essas configurações diferentes mas plausíveis a um conjunto de cenários que exigirão diferentes respostas e formas de actuação. Adicionalmente, tentará incluir eventuais rupturas e mudanças de paradigma. E esta forma de encarar a realidade poderá, em simultâneo, fazer com que nos preparemos melhor para o pior cenário (agindo em permanência sobre ele) e que actuemos de forma persistente sobre os factores indiciadores do (ou dos) cenário(s) mais do nosso agrado.

sexta-feira, novembro 29, 2002

Lula está muito perto

O Brasil encontra-se, nestes meses derradeiros de 2002, num período de transição entre a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e a de Lula.
Depois de 8 anos de liderança de FHC - caracterizada, muito sucintamente, por uma maior abertura do Brasil ao exterior (clara, por exemplo, no crescimento dos fluxos de Investimento Directo Estrangeiro (IDE)), um conjunto alargado de processos de privatização de sectores infra-estruturais (como a energia e a água), acordos vários com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (indo Lula ainda beneficiar de uma parte do último empréstimo negociado por FHC), uma subida significativa da taxa de desemprego e uma descida da de analfabetismo - Lula, um antigo operário, parece estar pronto para o grande momento da sua conturbada vida. É uma espécie de “grande teste”, estando todos os olhos (e não só os dos brasileiros) direccionados para ele, constituindo Lula e os resultados da sua política um claro crivo empírico (que tem o Brasil, “eterno sonho adiado”, como palco ideal) de um conjunto de novas ideias/reinterpretações de uma esquerda de fusão, do “povo de Porto Alegre”, céptico relativamente à globalização cultural e capitalista (embora dela, de alguma forma, fazendo parte) e certo da “violência do capital” (e sobretudo de um eventual “livre arbítrio social do dinheiro”). A tarefa, é quase desnecessário dizê-lo, será dificílima, sendo certa uma avalanche de “provas” sucessivas (a forma da reforma agrária, desculpem o “quase pleonasmo”, constituindo-se como uma das primeiras).
É que Lula (e, especialmente, o que ele significa no imaginário das pessoas), claramente mais “amadurecido” – “vem para revolucionar e não para fazer a revolução” - após 4 eleições presidenciais (algumas das quais – como a que o opôs a Collor de Mello - perdeu de forma bastante injusta, diga-se), paradoxalmente, pode falhar quer faça o que de mais “radical” prometeu quer não o faça. E ele, olhando para algumas das pessoas (nada “revolucionárias”) que tem vindo a escolher para o acompanhar, parece saber bem o que o espera. Os equilíbrios vão ser muito instáveis e esta estranha quase unanimidade à volta da sua figura pode rapidamente tornar-se em extensa hostilidade e desilusão. É que as grandes paixões que sonham mudar o mundo e para aí apontam (e de que as pessoas tanto precisam), normalmente, como neste caso, personalizadas em alguém - um ideal corporizado -, rapidamente se podem tornar em repulsa quase orgânica, ou mesmo numa aproximação ao ódio. De facto, só nos pode trair quem de nós está perto. E Lula está muito perto, talvez demasiado muito perto...

sexta-feira, novembro 22, 2002

Chipre


Já por várias vezes aproveitei esta coluna para falar da situação de uma ilha “perdida” no Mediterrâneo que, por vicissitudes da política e da história, anda cada vez mais nas “bocas do mundo”: Chipre.
Dividida entre comunidades grega e turca desde 1974, ano da ocupação turca do Norte da ilha (onde foi criada a República Turca do Norte de Chipre – apenas reconhecida por Ancara), Chipre tem constituído ao longo dos tempos um incomodativo e persistente “grão de areia” na engrenagem europeia. Na primeira linha do alargamento da União Europeia (UE) a Leste (que deverá ter lugar em meados de 2004), parece ter chegado a “hora da verdade”, se me é permitida a expressão, não só para cipriotas gregos e turcos, como também para as relações entre a Grécia e a Turquia e para a percepção da capacidade de influência da UE como espaço de atractividade (capaz até de proporcionar soluções políticas pacíficas e estáveis entre gregos e turcos).
A Organização das Nações Unidas (ONU), fortalecida pela relativa “cautela” norte‑americana no Iraque (uma espécie de unilateralismo soft), possui igualmente uma importante palavra a dizer em Chipre (até porque são suas as forças que desde há muito separam as duas partes desavindas), tendo o seu Secretário-Geral, Kofi Annan, avançado com uma possível solução do “tipo Suíça”, com a transformação de Chipre (após referendos a Norte e a Sul) num Estado federal (com uma Política Externa única) composto por dois cantões com Constituições próprias.
Mas não é apenas a Suíça que serve de modelo. Por exemplo, os acordos de cooperação entre flamengos e valões que permitem a optimização da coordenação das diferentes políticas na Bélgica são um outro tipo de instrumento que a ONU diz ser de grande utilidade para o futuro de um Chipre federal.
A ONU aproveita também, neste momento de aperto em que o “relógio” da UE não pára relativamente a Chipre, para incluir no seu modelo múltiplas formas de imbricação entre comunidades, avançando com as propostas de um Conselho Presidencial composto por 10 membros em que a Presidência e a Vice-presidência seriam rotativas entre comunidades, de imposição dos Ministros para os Assuntos Europeus e dos Negócios Estrangeiros serem de cantões diferentes e, mesmo, de uma fórmula provisória (3 anos) de co‑presidência entre os líderes das duas comunidades. E esta espécie de “equilibrismo no arame” da ONU continua no sistema judicial, na criação de uma Comissão de Reconciliação (à la África do Sul), na redução das tropas gregas e turcas estacionadas na ilha, etc.
Encontramos assim, no Mediterrâneo Oriental, uma pequena ilha dividida e cheia de militares que “quer ser” a Suíça, tentando ir cooperando como os belgas e controlando ódios antigos como a República da África do Sul. Isto tudo, claro está, ao mesmo tempo que entra para a UE. E pensávamos nós, pequeno país na ponta Ocidental da Europa, que a nossa vida ia ser complicada nos próximos tempos...

sexta-feira, novembro 15, 2002

Debate sobre o futuro dos egoísmos europeus

Não deixa de ser curioso que aquilo a que normalmente se chama “Debate sobre o futuro da Europa” (e que engloba inúmeras tomadas de posição de líderes e entidades europeias) tem sido (e continuará seguramente a ser até à Cimeira de Berlim de 2004) sobretudo um debate sobre o futuro enquadramento institucional da União Europeia (UE). Este facto, compreensível dada a necessidade de se definir claramente a nova estrutura em que, com o alargamento no horizonte próximo, se irão mover os principais actores da “cena” europeia, sugere, no entanto, a existência de um perigo real de desvio do foco para questões que embora sejam indubitavelmente essenciais, não deixam se ser fundamentalmente técnicas, deixando‑se para “mais tarde” o debate substancial (e bem mais difícil) sobre as grandes questões definidoras da UE como projecto (exs.: Justiça e Assuntos Internos (JAI), orçamento comunitário, Política Externa e de Segurança Comum (PESC), Defesa,...).
A preocupação com a sensibilidade nacional à forma do “regimento europeu” e o “peso” atribuído à respectiva discussão (vários analistas referiram, por exemplo, que a Cimeira de Laeken apenas terá marcado o início de muitos anos de análise e discussão destas matérias) dificilmente poderá deixar de ser um sinal da permanência (ou mesmo do agudizar) dos interesses divergentes dos Estados relativamente ao processo de integração na Europa, esteja esse interesse virado para a intergovernamentalidade, esteja ele inclinado para o modelo federal (o que, mais uma vez, não deixa de ser curioso). A este respeito, são também elucidativas as palavras de Seixas da Costa, ex‑Secretário de Estado dos Assuntos Europeus e actual embaixador junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que, em entrevista, sublinhou a importância de Portugal apoiar a manutenção/reforço dos poderes da Comissão Europeia, justificando esta opção como uma consequência indirecta das posições cépticas dos “grandes” Estados‑membros (EM’s) da UE face à referida Comissão. É, no fundo, a ideia de que o melhor modelo para uma certa ideia de Europa é, necessariamente, o modelo teórico que garante e potencia a defesa dos interesses de todos os EM’s. É a ideia de que, à boa maneira da “mão invisível” de Adam Smith, a persecução dos interesses egoístas das entidades individuais (neste caso, os EM’s da UE) continuará a contribuir para o “bem abstracto” do conjunto (neste caso, a UE). O problema é se a natureza do processo de integração europeia evoluir para as cercanias do conceito de bem público, não “regulável” por esta amálgama de egoísmos estatais e correndo o risco de deixar de por ela ser “produzido” e colocado à disposição dos cidadãos europeus.

sexta-feira, novembro 08, 2002

Um campo de golfe acolá

O processo de abordagem específico da prospectiva estratégica, ramo do conhecimento cada vez mais relevante nos tempos conturbados (económica e geopoliticamente) que correm, inicia-se regra geral com uma inquietação, uma “irreverência intelectual”, um “e se...”. E se “x” acontecer, estaremos preparados? E se a realidade económica se aproximar do “cenário y”, como nos (“nós”, empresa, país, região, cidade, indivíduo, etc.) organizaremos? O que podemos fazer, quais são as acções mais adequadas para influir no “cenário z”? Como o podemos transformar em “w”, mais favorável para a nossa organização? Mas constituirá o “cenário w” uma expectativa coerente e plausível?
Nesta forma de olhar o mundo e as relações entre os múltiplos actores em liça esta espécie de jogo do “e se...” é, de facto, uma constante. Breves exemplos: e se o Reino Unido aderir à União Económica e Monetária (UEM), o que se altera? E se nunca o vier a fazer? E se a UEM, devido a fortes divergências entre os seus membros, colapsar? E se a França se aproximar dos EUA, assistindo-se a uma dinâmica transatlântica de fluxos de capitais com reflexos, por exemplo, ao nível da indústria de defesa? E se a França, pelo contrário, priorizar a concorrência directa com os EUA ao nível da Defesa e da Política Externa? E se os EUA e a Rússia forem os novos aliados do século XXI? E se não? E se as tensões aumentarem (no Cáucaso e na Ásia Central, por exemplo)? E se a Rússia e os principais Estados‑Membros da União Europeia (UE) se aproximarem entre si e se afastarem dos EUA? E se a Turquia aderir à UE e também fizer parte deste grupo? E se nunca aderir? E se a Turquia e a Grécia entrarem em conflito devido a Chipre? E se a Turquia anexar a parte Norte da ilha? E se o Sul se integrar na Grécia? E se Chipre já estiver, quando estes acontecimentos tiverem lugar, na UE? E se não? E se alemães e franceses se afastarem (por causa da Política Agrícola Comum, por exemplo), como evoluirá a integração europeia? E se, pelo contrário, o eixo franco‑alemão ganhar novo ânimo? E se Portugal apostar numa aliança estratégica com o Brasil? E se for com a Espanha? E com a França? E a Holanda e o Benelux serão atraentes? O que temos que transformar para nos tornarmos seus parceiros nas questões europeias? E se a Espanha entrar em crise (por um falhanço da “aventura latino‑americana” e/ou uma crise com Marrocos devido a Ceuta e Melilla e/ou um exacerbar das tensões autonómicas, por exemplo)? Quais são as vantagens? Existirá alguma? E os inconvenientes? E os riscos? E com que Espanha podemos contar? E com que França? E com que Portugal? Virado para o turismo? Para o sector automóvel? Para os sectores tradicionais? Quais são as consequências das diferentes possibilidades? Quais as necessidades para que as possamos influenciar? Que Investimento Directo Estrangeiro queremos atrair? Qualquer um? Mais um construtor automóvel de grandes dimensões? De que tipo de automóvel? E serviços informáticos? É possível? Como? Em que áreas devemos focalizar os nossos esforços de Investigação e Desenvolvimento? Que parceiros devemos procurar? Vamos a “Detroit” (automóvel)? A “Milão” (moda/design)? A Hollywood (entretenimento)? A Silicon Valley (software e tecnologias da informação)? A Cambridge (biotecnologia)? Valerá a pena? Será necessário o esforço? Ou o nosso sol é suficiente? Mais um casino aqui. Um estádio de futebol ali. Uma praia além. Um campo de golfe acolá...

sexta-feira, novembro 01, 2002

11/9


Ao deitar um olhar rápido para o conjunto de textos publicado nesta coluna ao longo deste ano, noto com curiosidade a quase inexistência de referências directas à série de acontecimentos simbolizados mediaticamente pelos ataques às torres gémeas de Nova Iorque no dia 11 de Setembro de 2001 (11/9). Abordá-los-ei aqui, muito sucintamente, com o foco em algumas das alterações que a citada série de eventos trouxe para o sistema mundial.
Em abstracto, se olharmos de longe (sentados confortavelmente no planeta Marte, por exemplo), podemos afirmar que pouco ou nada terá mudado. O sistema continua unipolar (ou unimultipolar, para satisfazer os mais rigorosos destas coisas da Estratégia), com uma potência hegemónica “encarregue”, dada a sua supremacia económica e militar, de “gerir” um mundo conturbado, o que lhe traz, na minha perspectiva, grandes vantagens e grandes inconvenientes. Grandes vantagens basicamente pelo conjunto de regras que tem capacidade para impor (e.g. a noção de ataque preventivo) e/ou não se sujeitar (e.g. o Tratado Anti‑Mísseis Balísticos). Grandes inconvenientes ligados não só ao desgaste político, militar e económico que o actual sistema comporta para os EUA (é obviamente a este actor que me refiro) mas sobretudo à sua sujeição àquilo que eu chamaria “crítica por inacção” e à impossibilidade (ou, pelo menos, grande dificuldade) de se situar, mesmo que ocasionalmente, na posição de free‑rider estratégico, simultaneamente apanágio e estigma da hegemonia.
Se aterrarmos na Terra, contudo, não parece ser difícil intuir que o sistema internacional parece ter mudado no espaço de pouco mais de um ano, quanto mais não seja porque mudaram os principais actores (os EUA estão diferentes, a Rússia está diferente, a Índia está diferente, etc., etc.) e, sincopadamente, mudou a percepção que a Humanidade faz do mundo em que vive, a “nossa” perplexidade perante o sistema.
A Europa está mais só (e, espera-se, mais responsável), longe dos “velhos tempos” da Guerra Fria em que os EUA a geriam e acarinhavam como um bebé frágil e precioso. Hoje, os EUA (os tais “senhores” poderosos com muito trabalho para fazer), têm outras paragens com que se preocupar, sendo que os equilíbrios geoestratégicos são cada vez mais definidos bem longe do “velho continente” (na Ásia, por exemplo).
Surgiu a noção de terrorismo global, simbolizado pela Al Qaeda, estranha, maniqueísta, etérea e, eu sei que soa estranho, mediática (parece que houve uma lista de estudantes em Viseu que usou uma fotografia do Sr. bin Laden como veículo promocional) organização tentacular que, utilizando uma certa interpretação do Islão como arma e fonte de legitimidade, se apresenta sobretudo como movimento político radical e unificador.
A Rússia aproximou-se dos EUA formando-se uma complementaridade estratégica entre estes dois actores baseada sobretudo nos hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) mas também, por exemplo, no crescente investimento privado norte‑americano na Rússia, na aproximação Rússia-NATO, na “contenção” da China e no combate ao fundamentalismo islâmico e à já citada rede Al Qaeda.
Estes constituem apenas alguns exemplos de transformações estratégicas que se acentuaram a partir do 11/9 e, se é verdade, como dizia Camões, que “todo o mundo é composto de mudança”, parece que desta vez, ao contrário do que dizia a canção, é esse mesmo mundo que nos anda a trocar as voltas...

sexta-feira, outubro 25, 2002

Europa: feliz complexidade

Em artigos anteriores tenho chamado a atenção para a grande complexidade não só das interpenetrações entre os processos em curso na União Europeia (UE) mas também entre as preferências estruturais dos Estados-Membros (EM’s) (ou, num sentido mais abrangente, dos actores estratégicos) e entre os meios à disposição destes últimos para o “jogo” de poder inerente à actual fase da integração europeia. Ao mesmo tempo, tenho referido a particular indefinição que a conjuntura actual comporta, a qual se torna ainda mais visível em consequência não só da já muito discutida falta de liderança a nível europeu (de facto, longe parecem ir os tempos da dupla Kohl‑Mitterand e da Comissão Delors), mas sobretudo do facto de aparentemente não existirem, na actualidade, blocos estáveis de Estados mais influentes que funcionem como coesivos do todo e definidores da orientação geral da União. Mas nem tudo são “nuvens negras”. As diferenças de interesses entre as posições dos EM’s da UE também não parecem ser de natureza a impossibilitar, a priori, a obtenção de compromissos. Aliás, mais do que possíveis, esses compromissos parecem ser, de facto, necessários, surgindo aí um complexo “jogo” de possíveis “compensações” entre as múltiplas e frequentemente díspares preferências dos actores, parecendo estar em aberto um largo espectro de evoluções possíveis para o processo de integração europeia (tenho especulado sobre algumas delas nesta coluna). De facto, mesmo as medidas tomadas na última década (como, por exemplo, as que conduziram à União Económica e Monetária e ao euro) parecem mostrar que, apesar das referidas dificuldades, todas as opções estão, ainda, “em cima da mesa”.
Utilizando a terminologia clássica da teoria da Estratégia, o sistema europeu pode, na actualidade, considerar-se como multipolar, possuindo uma regra de equilíbrio que consiste basicamente na percepção de que a actuação de cada actor tem sempre em mente a oposição a qualquer coligação (que não o inclua, obviamente) ou a um actor isolado particularmente poderoso que tenda a assumir uma posição de predominância em relação ao resto do sistema, desequilibrando-o. Num sistema deste tipo muitas das alianças tenderão a ser específicas (às questões e aos processos em causa) e de curta/média duração.
Este contexto e a incerteza de rumo a ele associada confere ainda maior importância às idiossincrasias dos actores e a eventuais alterações das suas filosofias de actuação, ou seja, na minha perspectiva, as evoluções dependerão sobremaneira dos posicionamentos dos principais actores em “jogo” (e de eventuais alterações nesses posicionamentos). De referir, para terminar, que sou daqueles que acreditam que o processo de integração europeia não tem (felizmente) um destino preestabelecido (por muito que alguns o estabeleçam e/ou o desejem) e que o seu ritmo e direcção resultam não só de uma complexa negociação entre governos nacionais, mas também, embora de forma ainda marcadamente indirecta, entre outros actores infra e supra-estatais como as regiões ou os grandes grupos empresariais. Digo felizmente, assumindo claramente uma duplicidade composta de liberdade e de responsabilidade, acreditando que cabe a cada geração viver numa Europa por si moldada e não apenas pelas linhas de força da História.

sexta-feira, outubro 18, 2002

Defesa, dinheiro e ambições várias

Encontram-se em discussão pública as Bases do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) que deverão resultar, após “passagem” pela Assembleia da República e pelo Conselho de Ministros, num novo CEDN. Este, utilizando as bonitas palavras dos proponentes (Governo/Ministro da Defesa), deverá constituir‑se como “um poderoso factor de mobilização para um projecto nacional, que ajude Portugal, enquanto Estado, e os Portugueses, enquanto Nação, a preparar, com a segurança da sua identidade, o seu lugar num mundo que é diferente.”
Lendo as referidas “Bases”, um “leigo com algumas luzes destas matérias” fica com a sensação de que “está lá tudo” (e o que não está na letra está no espírito...): os objectivos permanentes, as ameaças (as que se podem nomear...), as principais alianças e áreas de interesse estratégico, os objectivos em termos de capacidades militares, etc. Contudo, numa altura em que sobe (novamente) a tensão entre chefias militares e governo, uma palavra surgiu-me quase inexplicavelmente quando lia as “Bases” e a sua panóplia de ambições: dinheiro. “Dinheiro” sem qualquer duplo sentido ou ironia mas sim no seu significado estrito, dotação orçamental para fazer face às ambições expressas. É aqui que, mais uma vez, parece estar o cerne da questão. Na minha perspectiva, “o limbo orçamental” que envolve as Forças Armadas (FA) dificilmente poderá ser relaxado. Mesmo com a generalização de uma certa “onda securitária”, as reticências são, atrever‑me‑ia, estruturais. De facto, na minha perspectiva, independentemente das vontades políticas e das ideologias no poder, muito dificilmente se alcançará um crescimento acentuado/sustentado das despesas militares. Não sou nem pacifista nem realista puro mas parece-me que o rigor e a eficiência preconizados no documento (outra coisa não seria de esperar) serão inevitavelmente acompanhados, no máximo, por um reduzido crescimento, em percentagem do produto, das dotações orçamentais dedicadas às FA. E, tendo em conta um contexto de afirmação do indivíduo em que os tradicionais intermediários (família, Estado, igreja,...) fraquejam e em que se assiste à “divinização do humano” (a que se refere Luc Ferry), mesmo esse reduzido crescimento tenderá a ser justificado, sobretudo, pela participação em operações multinacionais de paz. De resto, o Estado, actor central da Defesa e da “gestão da violência armada” está em profunda transformação (tal como, aliás, a nação), atravessado por forças poderosíssimas ligadas não só à dispersão de poder mas também a fenómenos demográficos e etnológicos como o envelhecimento, a imigração, o multiculturalismo ou a afirmação regional. O conceito de fronteira desvaneceu-se, encontrando-se o Estado (tradicional garante da segurança dos seus cidadãos) cada vez mais encurralado entre a força do macroregionalismo (a União Europeia, por exemplo) e as pulsões regionais no seu interior (veja-se o que acontece em Espanha, por exemplo). Assim, utilizando as palavras das “Bases”, o “lugar [de Portugal] num mundo que é diferente” será, acima de tudo, o seu lugar naquilo que eu chamaria o “jogo das novas fronteiras da participação”, complementando formas de actuação relativamente fáceis e passivas ligadas ao aproveitar de oportunidades (fundos comunitários, por exemplo) com actuações muito mais exigentes e inovadoras nos fóruns económicos, científicos, políticos e militares inter e transnacionais. Afirmar Portugal é também, parece-me, ter capacidade (e vontade) para “pensar o mundo” e para participar na acção sobre ele.

sexta-feira, setembro 27, 2002

União Europeia, uma intricada construção: um pouco de geopolítica e geoeconomia

Este artigo representa uma continuação da curta viagem que iniciei há duas semanas pela complexidade do processo de integração europeia. Hoje, tentarei abordar alguns fenómenos de cariz eminentemente geopolítico e geoeconómico, advertindo desde já que, no que toca à compreensão da realidade, acredito ser fundamental pensar o todo, o contexto que inevitavelmente influencia o caso concreto (é esta a lógica central da chamada “teoria da complexidade” consubstanciada no exemplo muito simples das duas rolhas que, abandonadas num mesmo rio, nunca se dirigem na mesma direcção – como referia, em entrevista, o Prof. João Caraça, não basta, assim, compreender a rolha, é necessário (tentar) conhecer o rio, os ventos, etc.). Neste contexto (e voltando à Europa), por exemplo, a força ou fraqueza do binómio Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD)/Política Externa e de Segurança Comum (PESC), decisiva para a capacidade de afirmação internacional da União Europeia (UE), constitui-se como um dos factores que definirão os níveis de credibilidade associados ao euro e à respectiva relação com o dólar. De facto, convém não esquecer que a consolidação do papel internacional do euro como moeda concorrente do dólar ocorrerá fundamentalmente quando for adoptado, de maneira significativa, como reserva cambial pela China e outras economias emergentes e, num mundo onde o petróleo ainda é a principal fonte de energia, pelos principais produtores petrolíferos. Ora, parece quase intuitivo que esta renovação de carteiras acontecerá com muito maior probabilidade se a UE for um actor global relevante, ou seja, com uma “voz única” e com capacidade de intervenção não só em eventuais crises regionais (Chipre, Balcãs, etc.) mas também nas principais crises internacionais. Por outro lado, os níveis de credibilidade/estabilidade da União Económica e Monetária contribuirão para a definição da imagem internacional da UE, facilitando ou dificultando a possibilidade de solidificação da PESD/PESC.
De referir que os exemplos de possíveis crises regionais não são, de forma alguma, naives pois quer o futuro da questão de Chipre (e das tensões entre Grécia e Turquia) quer a questão dos Balcãs (“ninho” de tensões étnicas, históricas e políticas) constituem, na minha perspectiva, dois grandes testes à capacidade da UE se afirmar internacionalmente (antes de conseguir actuar globalmente a UE tem, de facto, de conseguir actuar e encontrar consensos e linhas de acção a nível regional).
Mas, aumentando a complexidade deste intricado de relações, a resolução da questão de Chipre (e, em termos mais amplos, o melhoramento da relação UE‑Turquia) parece ser, em si mesma, muito importante para a consolidação da estabilidade nos Balcãs numa óptica de manutenção de Estados multiétnicos e de estabilidade de fronteiras. De facto, estas soluções defendidas pela UE (e pelos EUA) para os Balcãs poderão sair reforçadas se o entendimento Grécia-Turquia em Chipre se cifrar numa solução confederal ou federal. A esta ilha do Mediterrâneo, dividida entre Ásia e Europa e vizinha da terra de origem da “nossa” princesa, voltarei, dado o seu simbolismo e importância estratégica, num próximo artigo.

sexta-feira, setembro 20, 2002

União Europeia, uma intricada construção: alargamento e defesa

No último artigo iniciei uma aproximação a uma representação da complexidade do processo de integração europeia, tendo centrado a minha atenção naquilo que considero ser a base de sustentação do referido processo: a União Económica e Monetária. Hoje, proponho-me abordar sucintamente (como sempre), algumas das implicações do processo de alargamento da União Europeia (UE) para o conjunto de forças em “ebulição” na Europa.
Assim, no que concerne o alargamento da UE, a questão central parece ser: como vão ser distribuídos os seus custos políticos e económicos, directos e indirectos? De facto, a já referida (no último artigo) reforma das políticas comuns (Política Agrícola Comum e Política Regional) surge fundamentalmente, neste contexto, como uma espécie de tentativa de “manter sob controlo” os custos do alargamento e as respectivas implicações para o orçamento da União, não sendo tão decisiva e imperiosa se se optar, por exemplo, pelo adiamento do processo e/ou pela sua “dimensão mínima” (eventualmente sem Polónia, Eslováquia e/ou alguns dos países bálticos e, definitivamente, sem Roménia, Bulgária e, sobretudo, Turquia).
Os efeitos do alargamento não são, obviamente, igualmente distribuídos pelos actuais Estados-Membros da UE (por exemplo, a maioria dos raros estudos sobre o tema aponta Portugal como o menos beneficiado/mais prejudicado). Daí que se possa imaginar a actuação, aquando das negociações, de mecanismos de obtenção de contrapartidas, consubstanciados na exigência (especialmente pelos poderosos menos beneficiados/mais prejudicados – leia-se, pela França) do início ou do reforço de processos em que os respectivos países possam obter mais vantagens, em contrapartida de não bloquearem o avanço do alargamento e da reforma das políticas comuns (uma lógica semelhante à que aconteceu, por exemplo, com o sim francês à reunificação alemã e a cedência germânica à moeda única). Mas que novas áreas de integração podem ser essas? Na minha perspectiva, os novos avanços passarão pela concretização dos projectos europeus na área das indústrias da aeronáutica e do espaço (onde a França é líder europeu), ou seja, por projectos como o Galileu (concorrente do GPS americano) e o Airbus militar, por exemplo. Esta espécie de “renovada política industrial” definirá, por sua vez, a existência ou não dos meios fundamentais para uma maior operacionalidade e, sobretudo, independência face aos EUA da Política Externa e de Defesa Comum (se tal for desejado pela UE – pela França é-o, concerteza). No entanto, estas “novas” ambições esbarram, lá está, numa eventual permanência da lógica estrita de rigor orçamental (quer a nível comunitário quer a nível nacional). A este rumo possível (reforço da frágil Política Externa e de Defesa da UE), suas tensões e testes próximos voltarei num próximo artigo.

sexta-feira, setembro 13, 2002

União Europeia, uma intricada construção: a base


Muito se fala da complexidade do processo de integração, da sua relativa opacidade, da necessidade de simplificar (os Tratados, os procedimentos, ...), do problema do afastamento dos cidadãos deste processo, etc.. Muitas propostas (meritórias) são avançadas para optimizar este conjunto de situações mas uma coisa parece certa: é muito difícil simplificar um conjunto de processos, de interligações entre processos e de dinâmicas de actores que, de facto, são complexos. De qualquer forma, resolvi ensaiar uma pequena tentativa de explicação do que se passa “lá na Europa”, começando pelos processos que constituem, na minha perspectiva, a base de sustentação da União Europeia (UE) dos nossos dias.
Um desses processos é, sem qualquer dúvida, a União Económica e Monetária (UEM). Ela está, hoje, na base da UE pois é um processo de cujo êxito ou inêxito dependerá, na minha perspectiva, o “à vontade” com que se seguirá para níveis mais fortes de integração noutros processos. Fortemente associado à UEM está a “exigência” de rigor orçamental com que se deparam os EM’s da zona euro (veja-se o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e os objectivos dos Programas de Estabilidade), sendo que o sucesso do euro, emblema central da UE de hoje, constitui a base da argumentação dos apologistas desta “exigência”. Igualmente na base de sustentação da integração europeia parecem estar as reformas estruturais em curso na grande maioria dos Estados‑membros. Penso não só na reforma dos sistemas de pensões, dos sistemas financeiros, dos mecanismos de incentivo à inovação, do mercado de trabalho e da regulação salarial, mas também, por exemplo, na reforma da oferta dos sistemas de saúde e de educação. A realização ou não destas reformas reflectir‑se-á no potencial de crescimento das Economias da UE, na evolução do euro e, assim, no sucesso/insucesso da UEM. Por exemplo, a reforma dos sistemas de pensões e dos sistemas financeiros, através das suas implicações ao nível da sustentabilidade orçamental e do seu contributo para a definição da intensidade de fluxos de capitais que entram e saem da zona euro, têm um papel não desprezível na definição do valor externo do euro.
Por outro lado, o referido ênfase no rigor orçamental constitui um forte impulso para a reforma das Políticas Comuns da UE (nomeadamente da Política Agrícola Comum e da Política Regional), sendo este facto ainda mais evidente se se mantiver o “acento tónico” na manutenção dos actuais limites do orçamento da União. No entanto, poderá existir um efeito em aparente contradição com este, fundamentalmente ligado ao aumento das resistências à reforma das Políticas Comuns por parte dos actuais beneficiários líquidos, sendo essa reforma encarada como mais um constrangimento ao crescimento, a juntar a uma eventual permanência do rigor orçamental preconizado no PEC. Tudo isto ganha ainda maior importância ao incluirmos na análise o processo de alargamento da UE a Leste, pois o “impulso reformador” aqui em causa é dele inseparável, sendo, simultaneamente, potenciado pelo alargamento e uma condição para o alargamento (dada, por exemplo, a aparente impossibilidade política e financeira de manutenção numa UE a 25 dos critérios de distribuição dos incentivos em vigor na UE a 15). Mas, a este “capítulo da novela”, voltarei num próximo artigo.

sexta-feira, setembro 06, 2002

Três “famílias”, lá longe, em “Bruxelas”


Numa altura em que, na Europa, se discute (em Portugal tenta-se, a espaços) o futuro do “nosso” sui generis processo de integração, pareceu-me oportuno aproveitar este espaço para uma breve apresentação (estilo “ficha biográfica”) das três principais (em número de deputados no Parlamento Europeu (PE)) “famílias” políticas europeias.
O Partido Popular Europeu (PPE), grupo político com maior representação no PE (233 deputados provenientes de 31 partidos nacionais) tem como “núcleo duro” os Partidos Democrata‑Cristãos europeus que, desde o pós-guerra, têm sido convictos defensores da integração europeia e, mais recentemente, se têm aproximado da defesa de uma evolução federal para a União Europeia (UE). Nos últimos anos, têm procurado estabelecer relações mais próximas com outros partidos conservadores, os quais, no entanto, não partilham com eles uma visão federalista para a Europa (vejam-se os casos dos conservadores britânicos, dos italianos da Forza Italia e dos gaullistas franceses). No seio dos democrata-cristãos europeus salientam-se os dois partidos alemães – a União Democrata-Cristã (CDU) e a União Social-Cristã (CSU) – o que se consubstancia numa nítida proximidade entre as propostas do PPE e aquelas que estes partidos centrais estão disponíveis para defender.
O Partido dos Socialistas Europeus (PSE), constituído por 179 deputados e liderado, no PE, por um espanhol (Enrique Baron Crespo), tem tradicionalmente uma visão defensora de uma maior integração europeia, sendo de realçar o seu peso na Comissão Europeia (10 dos 20 Comissários Europeus provêm desta área política). Em claro processo de afastamento do poder em vários países europeus no rescaldo da “terceira via” personificada por Tony Blair (Portugal, França e Holanda são três exemplos; Suécia e, principalmente, Alemanha podem ser mais dois já em Outubro), este grupo integra um conjunto de vários partidos muito significativos (quer no seio do PSE quer na UE como um todo) de cuja interacção (por vezes impregnada de algumas diferenças de base – assentes, por exemplo, em concepções fundamentalmente nacionais da integração europeia) resulta o posicionamento do PSE face às diversas questões em agenda. De entre este partidos destacam-se o SPD (Partido Social Democrata da Alemanha), os Trabalhistas britânicos, o PSOE (Partido Socialista Obrero Espanol) e o PS francês.
O Partido Europeu dos Liberais Democratas e Reformistas (ELDR) do PE, grupo bem mais “leve” que os dois anteriores (53 deputados), apresenta-se como a terceira força política no PE. Caracterizando-se por uma atitude globalmente construtiva relativamente ao processo de integração não deixará de reflectir eventuais inversões mais eurocépticas eventualmente determinadas por problemas específicos nos EM’s onde detêm um maior peso e responsabilidade (nomeadamente na Holanda, na Bélgica e na Dinamarca onde fazem parte do governo). De realçar também a importância dos liberais britânicos não só neste grupo (constituindo o “contingente” mais numeroso) mas sobretudo no próprio sistema político inglês (tradicionalmente marcado por uma fortíssima bipolarização) e a clara concentração das proveniências dos membros do ELDR nos países “ricos” do Norte da UE.
De referir que, infelizmente (apesar da retórica da importância de um debate público alargado sobre o futuro do processo de integração europeia), não só ainda está por especificar o papel que os partidos políticos europeus poderão desempenhar no desenvolvimento de um verdadeiro e consistente “espaço público europeu”, como ainda estão por resolver questões tão centrais (para a promoção do referido “espaço”) como o estatuto e o financiamento dos referidos partidos.

sexta-feira, agosto 30, 2002

David Lynch e a sucessão do Papa


Em casa da minha família sempre se recebeu (e ainda se recebe) o Jornal da Beira, periódico de matriz católica profundamente enraizado na nossa região. Habituei-me a olhar para as suas notícias imaginando, intimamente, os respectivos redactores e tentando compreender a forma como a religiosidade se funde com a análise jornalística, moldando-a e dando-lhe contornos profundamente místicos. Para os mais cinéfilos, diria que é quase uma visão transformadora da realidade em “imagens” que a simbolizam, semelhante ao imaginário criado, ao longo dos seus filmes, por David Lynch. Mas isto é apenas um pequeno aparte, motivado pela óptima sensação que é poder escrever estas linhas sabendo que as minhas limitações são “só” de cariz racional, cultural e intuitivo...

Numa altura em que a Igreja Católica, conscientemente, tenta preparar a sucessão de João Paulo II (o qual, embora ainda dotado de enorme lucidez, está cada vez mais débil fisicamente), a instituição em causa tem sofrido grandes críticas (particularmente nos EUA) derivadas do sucessivo envolvimento de alguns membros seus (em diferentes posições da hierarquia) em casos de pedofilia. Pode estar, assim, criado um “caldo” que faz com que esta instituição, o mais forte e organizado dos ramos judaico‑cristãos que moldaram grande parte do mundo contemporâneo, sofra renovadas turbulências aquando da referida sucessão.

Se o próximo Papa for alguém representativo da parte crescente da cristandade situada no “Sul” do planeta, mais tradicionalista e conservadora, é possível um acelerar do clima de crispação no “Norte”, baseado em “bandeiras” como o fim do celibato dos padres e a ordenação de mulheres. Um eventual descontentamento surgiria (como já surge, aliás, a espaços) provavelmente dos EUA e da Alemanha, curiosamente (por não serem países de maioria católica) os dois principais contribuintes financeiros do Vaticano. De referir que uma futura postura conservadora indiciadora da ruptura em causa pode também estar presente em candidatos como o actual arcebispo de Milão, Dionigi Tettamanzi.

Se o sucessor for alguém representativo do “Norte” e a Igreja Católica enveredar pela senda de reformas mais ou menos profundas mas significativas, as dificuldades também se farão sentir, sobretudo ao nível da adaptação do meio local (sustentáculo da acção global da Igreja) mais conservador.

Isto (sucessão e divisão interna face a algumas questões estruturantes), associado à difícil conjuntura internacional do pós-11 de Setembro, ao eternizar do conflito Israelo‑palestino (onde a Igreja tem tido tendência a tomar posições pró‑Palestinianas), ao clima de pré‑ataque ao Iraque e à força do lobbie judaico na administração da hiperpotência, pode potenciar uma crise assinalável, de consequências dificilmente antecipáveis, num dos referenciais da civilização ocidental.

sexta-feira, agosto 23, 2002

Globalização: brrr, que medo!


Acho deveras interessante a forma normalmente leve e casuística com que se aborda e “navega” no conjunto interminável de fenómenos e conceitos à volta deste “ser imaginário” chamado globalização.
Um amigo dizia-me, há dias, que a globalização pode ser muita coisa (novas tecnologias, mundialização das empresas, surgimento de novos actores e economias concorrentes a nível global, etc, etc.) mas que, para ele, ela é, no limite, a criação de uma enorme pool de poupanças à procura do melhor investimento a nível global. Eu não podia estar mais de acordo.
Confesso-me um pouco cansado da sucessiva politização do fenómeno. É a ideia da “má globalização”, aproximação a uma teoria da conspiração (viram o Matrix?) que parece acreditar que, algures do outro lado do Atlântico estão um conjunto de senhores vestidos de negro a jogar, a seu belo prazer, uma espécie de monopólio da globalização. Parece, às vezes, que vivemos todos na inconsciência de que somos explorados por um punhado de espertalhões que mais não querem que nadar, à tio Patinhas, num cofre cheio de dinheiro (obtido, inapelavelmente, por vias travessas, claro está) e, obviamente, despedir pessoas (de preferência muitas, milhares se possível). A globalização é, assim, uma “coisa” (quase um objecto de arremesso) acentuadamente má, que aumenta a pobreza, enriquece os ricos, mata as crianças de fome, cria guerras injustas, provoca desastres ambientais e, claro, despede pessoas, trabalhadores (aos milhares). Pergunto a mim próprio se, eventualmente, não será o próprio Homem o causador de alguns destes problemas. Porquê atribuí-los, então, ao “bicho papão” a que se chama globalização?
Como já devem ter adivinhado não acredito numa má (nem numa boa, diga-se de passagem) globalização. Ela é constituída, na minha perspectiva, por um conjunto de fenómenos que marcam fortemente a sociedade contemporânea (paralelamente à regionalização e à fragmentação geopolítica, por exemplo), comportando inúmeras potencialidades, positivas e negativas, a prazos variados. Assim, quando se tentam encaixar interpretações ideológicas numa realidade complexa, ensaiando simplificá‑la e interpretando-a à luz de conceitos frequentemente do passado, o resultado é, normalmente, de fraco alcance.
É que, pasme-se, a globalização (mesmo a sua definição mais “neo-liberal” e redutora que se possa imaginar) também tem facetas muito positivas e, pasme-se ainda mais, estabilizadoras do mundo em que vivemos. Duas perguntas que servem de exemplos: (1) alguém conscientemente duvida que o massivo Investimento Directo Estrangeiro na Índia (fundamentalmente nas indústrias do software e das tecnologias de informação) – que tornou este país fortemente dependente do Mundo e o Mundo dele – teve um papel apaziguador do conflito Indo-Paquistanês (duas potências nucleares) relativamente à região de Caxemira? (2) alguém conscientemente duvida que o capital estrangeiro presente em Taiwan e a progressiva abertura da China à economia mundial (com, por exemplo, a respectiva entrada na Organização Mundial do Comércio) são indissociáveis do controlo do estado de “tensão” em que se encontram, há vários anos, as complicadas relações entre estes dois actores?
Estes e outros exemplos levam-me atrevidamente a pensar que, se calhar, a globalização também tem algo de “bom”, pela interconectividade que comporta, pela estabilidade que (também) provoca.

sexta-feira, agosto 09, 2002

A pequena “grande” Holanda

Normalmente são apontados seis Estados-membros (EM’s) como os mais poderosos de uma futura União Europeia (UE) alargada a Leste: Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha e Polónia. No entanto, a Holanda, quer através da sua centralidade intrínseca quer através da especial influência que exerce no Benelux deve ser, na minha perspectiva, incluída nesse grupo restrito. É de notar, a título de curiosidade, que o Benelux imiscui-se claramente entre os “grandes” aquando da definição, no Tratado de Nice (ainda não em vigor), da futura ponderação dos votos no Conselho e da composição das outras instituições. No Conselho, por exemplo, Alemanha, Reino Unido, França e Itália terão 29 votos, sendo que o Benelux, no seu conjunto, possuirá exactamente o mesmo número. Espanha e Polónia terão 27. No entanto, os votos constituem, segundo o novo Tratado, apenas um dos critérios de votação. Um outro será o número de Estados sendo que, neste último critério, o Benelux, obviamente, conta por três...
Nesta perspectiva, evoluções nas posições da Holanda (país fundador da UE que, historicamente, tem vindo a apostar fortemente no processo de integração) podem ter consequências para o processo de integração europeia de muito maior alcance do que as que a respectiva dimensão eventualmente faria supor.
Membro “natural” do núcleo fundador da União Económica e Monetária, a Holanda encontra-se quer entre os maiores defensores do rigor orçamental e do cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, quer entre os mais cépticos relativamente à necessidade de criar um pólo de poder que equilibre, no que toca à Política Económica, a influência do Banco Central Europeu. Contribuindo mais que França e Itália para o “magro” orçamento comunitário, a Holanda tem especial interesse em reformas das Políticas Comuns (a Política Agrícola Comum é apenas um dos exemplos – o mais premente neste momento) que obstem a um significativo crescimento orçamental (e, logo, das suas contribuições) no pós-alargamento da UE. Isto não quer dizer que a Holanda seja céptica em relação a este processo. De facto, ela é um dos EM’s mais favoráveis a um alargamento amplo da UE aos países da Europa Central, Oriental e Báltica, sendo já muito assinaláveis os fluxos de investimento holandês que têm esses países como destino. Tradicionalmente próxima dos EUA, a Holanda é igualmente favorável ao alargamento da NATO, revendo-se numa Política Europeia de Segurança e Defesa que seja complementar (mais do que concorrencial) com a actuação dos EUA no mundo e em políticas na área da Justiça e Assuntos Internos que consubstanciem um reforço das responsabilidades europeias no combate ao terrorismo e à imigração ilegal.
Assim, a Holanda constitui-se, cada vez mais, como peça fundamental da “engrenagem” europeia, desempenhando um papel de actor charneira (simultaneamente influente e dependente), de ligação entre os múltiplos elementos do sistema UE. Sem dúvida, um actor a considerar por Portugal nas suas opções europeias, atrevendo-me mesmo a levantar uma questão um pouco provocatória nos tempos que correm: deverá Portugal continuar claramente focado na “frente ibérica” (de forma a garantir um parceiro forte em tudo que esteja relacionado com fundos comunitários – pelo menos a curto prazo) ou poderá o nosso país proceder a uma diversificação das suas opções estratégicas, optando, por exemplo, por tentar fazer crescer (cedendo em algumas questões e optando por um conjunto – difícil – de reformas) a relativa convergência de posições que tem com o Benelux liderado pela Holanda?

sexta-feira, agosto 02, 2002

A estranha esquizofrenia de “nuestros hermanos”


A Espanha tem sido um aliado de Portugal na maior parte das negociações com a União Europeia (UE), especialmente no que toca aos fundos comunitários que de forma tão visível entraram nos países peninsulares durante as últimas décadas. Compreensivelmente, Portugal teve tendência para aproveitar este relativo conforto de saber que tinha a seu lado um Estado com potencialidades de se tornar, à medida do acelerar do crescimento económico e da força estratégica, um dos “grandes” da UE. Só que este “conforto”, esta espécie de ombro amigo em que a diplomacia portuguesa em Bruxelas e Estrasburgo tende a repousar, tem revelado, aqui e ali, algumas posições dissonantes com a pacatez de uma certa ideia da Ibéria unida (por objectivos) e solidária.

De facto, a Espanha é, já hoje, um actor muito influente no “palco” europeu. No entanto, a sua acção é, por vezes, marcada pelo carácter algo “esquizofrénico” das suas posições, ao ambicionar, simultaneamente, fazer rapidamente parte do grupo dos “grandes” e protelar o mais possível a sua tradicional posição de “país da coesão” receptor de fundos. Face a esta renovada imprevisibilidade de “nuestros hermanos”, as posições portuguesas parecem eivadas de uma certa perplexidade. A Espanha país de coesão interessa-nos, obviamente. Acalma-nos. Constitui-se como um aliado na cada vez mais complicada “luta” pelos fundos comunitários, na afirmação da argumentação de que a UE é, acima de tudo, um exercício colectivo de solidariedade e estabilidade europeias. A Espanha que quer ser grande nos votos, a Espanha das negociações do Tratado de Nice, assusta-nos profundamente. O nosso calmo aliado nestas coisas da Europa, “de repente”, quer mais votos no Conselho, quer maior peso para o critério demográfico e assume, aparentemente em definitivo, um lugar entre os “grandes” (Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha), líderes e definidores “naturais” dos rumos do processo de integração.
É com esta “nova” Espanha em transição que Portugal tem de lidar. Uma Espanha cada vez menos pobre e defensora da coesão (embora “Madrid”, o centro, continue a necessitar dos fundos para financiar uma parte das transferências para as regiões menos desenvolvidas do território espanhol) e cada vez mais líder e parte fundamental do “núcleo duro” que tanto assusta os “pequenos” Estados-membros (EM’s) da UE mas que tendencialmente se afirmará numa UE com 25, 27 ou mais países. É uma Espanha que ambiciona ser uma potência europeia e atlântica, que investiu maciçamente na América Latina e que se apercebeu que o seu maior activo externo pode vir a ser a comunidade hispânica nos EUA e que as telecomunicações e a internet tornam essa comunidade acessível aos serviços e conteúdos espanhóis.

É esta Espanha, simultaneamente potencial centro de gravidade da UE e da América Latina que nos confunde. É esta Espanha, ainda hoje dotada de uma estranha esquizofrenia nos fóruns europeus que nos deixa perplexos.

sexta-feira, junho 28, 2002

E, no fim daquela avenida, não havia uma estação?


A região autónoma espanhola de Castilla-La Mancha identificou, recentemente, 22 espaços e instalações de estações de caminho-de-ferro como estando protegidos pela lei de Património Histórico da referida região. Foi um sinal claro, no seguimento de vários outros, da importância atribuída pelo poder político (regional e espanhol, neste caso) à preservação de um património, as estações de comboio, que não se esgota quando se esgota a operacionalidade/rentabilidade financeira deste ou daquele trajecto, desta ou daquela ligação. De facto, o património das estações é, regra geral, muito mais vasto, não se reduzindo o seu valor aos números crus da quantidade de passageiros (será necessário, ainda, dizer isto?), da especulação imobiliária ou dos ciclos eleitorais.
As estações são, foram, desde o século XIX, locais de partida e locais de chegada. Mas não são, não foram, só isso. São também locais de encontro e essa sua faceta, independentemente da lógica preço-custo aplicada ao serviço de transportes, pode ser renovada, actualizada e/ou redimensionada, incorporando espaços carregados de memórias colectivas cada vez mais raras. Assim, “ser de Viseu”, por exemplo, não é só nascer na Maternidade do Hospital São Teotónio (o novo ou o velho), estudar no Liceu Alves Martins ou na “Escola Comercial”, passear no Rossio, na rua Formosa ou no Fontelo, fazer compras na rua Direita, namorar no Parque da Cidade, visitar o Museu Grão Vasco (e recordar o impacto daqueles olhos de São Pedro), etc., etc.. Era (utilizo, infelizmente, o passado) também ter passado pela Estação, local que se esgotou, eventualmente, como ponto de partida e de chegada mas que não se deveria ter alienado como espaço de partilha, de memória de uma colectividade que se identifica, ao longo do tempo, como viseense (no que de espacial tal comporta).
Não ponho em causa, obviamente, os argumentos técnicos (a inadequação – aliás muito contestada – da via estreita, o desconforto do equipamento, a questão da segurança) que culminaram na destruição da Estação de Viseu e na sua “substituição” por uma rotunda. Entristece-me apenas que esses e outros problemas não tenham sido abordados de uma forma construtiva que culminasse numa dupla permanência em Viseu: a do comboio, como meio racional e moderno de gestão dos fluxos de bens e pessoas, e a do património, parte da identidade de uma colectividade, da Estação. Entristece-me, no fundo, que Viseu se tenha constituído como uma excepção a um princípio claramente enunciado, não há muito tempo, pelo próprio presidente da Refer (Rede Ferroviária Nacional): “não vendemos património na proximidade do caminho‑de-ferro. Quem vende fica com o dinheiro e gasta-o. Quem mantém e recupera o património fica com esses activos e ainda pode ter receitas”.
Afinal parece que, no fim daquela avenida, havia uma estação. Agora, a fonte muda de cor e chegamos mais depressa, curiosamente pela “Avenida da Europa”, ao hipermercado. Bonito.

sexta-feira, junho 21, 2002

A Pensão, a Pistola e o Imigrante

Quando Zeus, sob a forma de touro, seduziu a jovem e bela princesa Europa, levando-a no seu dorso para Creta (e iniciando-se aí, segundo a lenda, a definição de uma civilização europeia independente da Ásia), dificilmente poderia imaginar que, se esta lenda fosse actualizada para os nossos dias, a jovem princesa se transformaria, provavelmente, numa senhora na casa dos sessenta anos a iniciar o seu período de reforma e à espera que o Estado lhe comece a pagar a pensão a que tem direito. É que a Europa (“princesas” incluídas) está a envelhecer...
Fala-se correntemente em Estado-providência e em envelhecimento da população. Para efeitos deste artigo, a componente do tradicional Estado-providência que está em causa é a faceta do modelo de capitalismo euro‑continental ligada aos sistemas de pensões e que se caracteriza pelo predomínio de pilares públicos financiados em regime de repartição, com benefícios definidos e assegurando uma substituição do rendimento. Relativamente à dinâmica de envelhecimento, ela consubstancia-se nos seguintes fenómenos: (1) o envelhecimento geral da população que coloca pressões adicionais sobre a população activa no suporte do grupo crescente dos cidadãos reformados; (2) o envelhecimento da população activa que provocará alterações na adequação dos perfis de conhecimentos/competências e na capacidade de aprendizagem; (3) o envelhecimento no seio da população idosa que consiste num aumento do “peso” dos cidadãos com 80 ou mais anos e que será acompanhado por um aumento dos níveis de consumo de serviços de saúde e das situações de invalidez e dependência.
Face a esta tríade de “envelhecimentos” (população mais velha, trabalhadores mais velhos e, mesmo, idosos mais velhos) o Estado‑providência exige uma maior canalização de recursos, o que põe os Estados europeus perante múltiplas escolhas. Uma delas, na minha perspectiva, é a escolha entre o Welfare e a promoção do desenvolvimento de uma defesa europeia autónoma. No referido contexto, a “vontade” política de desenvolver a autonomia estratégica europeia (face aos EUA) esbarra, inevitavelmente, na realidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento e num orçamento comunitário limitado a 1.27% do PNB comunitário. Esta é, na minha perspectiva, uma primeira zona de tensão.
Por outro lado, os “três envelhecimentos” podem levar os poderes públicos europeus a tentar colmatar esse facto com a abertura à entrada de uma população imigrante maioritariamente jovem e participante no esforço contributivo do país onde se insira. Esta possibilidade não é, no entanto, completamente clara, dada a dimensão (e as eventuais consequências dessa dimensão) de que teriam que se reverter estes fluxos migratórios para que a referida compensação fosse efectiva. De facto, uma segunda zona de tensão tem a ver com a resposta ao aumento das pressões demográficas via imigração, sendo que ela pode, nos extremos, levar a uma abordagem puramente comunitária do fenómeno “imigração” ou provocar um retorno às concepções estritamente nacionais da imigração (pondo em causa, por exemplo, o espaço de livre circulação de pessoas) que levem, subsequentemente, a conflitos potenciais em torno das visões externas dos Estados‑membros.
A UE aparece, assim, como um “gigante complexo de cruzamento de soberanias” entre actores (sejam eles instituições europeias, governos nacionais, ONG’s, autarquias, regiões, eleitores ou outros). Voltarei a entrar nesse “gigante” (por uma “porta” diferente) num próximo artigo.