sexta-feira, dezembro 03, 2004

Vefa ou mãe frias?


A nossa princesa resolveu relaxar um pouco e fazer uma pequena pausa em temas (por vezes taciturnos) como os sistemas de pensões e as tendências demográficas, a estratégia da nossa cidade e da região, a relação transatlântica, as várias Políticas Comuns europeias, o posicionamento e as características dos principais actores europeus, a globalização e outras tendências, o sistema político europeu e o processo de construção europeia (incluindo o recente Alargamento), o Brasil, a transição democrática em Portugal e o Portugal actual e futuro, os principais conflitos no Mundo, a Prospectiva/Foresight como forma de encarar a complexidade e de “refrescar” o pensamento estratégico, a inovação e os novos actores globais.
E, já se sabe, para relaxar, nada melhor que um bom passeio de domingo. Assim, peguei em dois prospectos que invadiram a minha caixa do correio, indiferentes ao autocolante amarelo “Publicidade aqui não, obrigado”, e decidi "desfrutar de 2 dias inesquecíveis", fazer "uma maravilhosa viagem", viajar "para fora 'cá dentro'" e, ainda por cima, receber uma "oferta surpresa" ou, por outras palavras "um fantástico e prático presente surpresa (a escolher entre vários presentes) totalmente GRÁTIS!!".
Resolvi, então, comparar os dois folhetos. A dificuldade de escolha tornou-se óbvia: Vefa ou Mãe Frias? Mãe Frias ou Vefa?
A Vefa Travel (808 251 708) parece ser espanhola (pelo tipo de erros de ortografia do panfleto), tem mais nome no mercado, dez anos de experiência nestas andanças e propõe um pacote praticamente irresistível que me levará a São Bento da Porta Aberta e, supresa, supresa, ao Bom Jesus. Mas o grande trunfo, o "Derlei" do programa, é mesmo "um interesante [interesante = interessante, em espanhol] cruzeiro ao longo da ALBUFEIRA DA CANIÇADA passando [atente-se] sobre a ALDEIA SUBMERSA 'VILAR DA VEIGA', desfrutando ao mesmo tempo de uma paisagem única...". E, claro, além do já mencionado presente, inclui o famoso "cocktail de boas vindas" e a indispensável "festa baile". Refere também que, no segundo dia, a seguir ao pequeno almoço, "Vefa convida-os [a nós, óbvio] a uma amena [nada de muito violento] demonstração dos seus artigos exclusivos para a família e para o lar (...)." Mal posso esperar...
“E a Mãe Frias?” – perguntam os leitores. A Mãe Frias (808 20 26 20) prima pela sobriedade (o que, confesso, me cativou desde o início), propondo um "passeio às aldeias históricas de Portugal": Marialva ("o planalto das lendas"), Piódão ("a encosta da natureza") e Linhares da Beira ("entre o céu e a terra" - não sei se se referirá a uma eventual projecção do filme de Oliver Stone). No programa ("restrito a cidadãos portugueses" - será a Mãe Frias uma extensão turística do PNP?), encontramos novamente uma referência a que, "no decurso do passeio, em convívio e harmonia, será efectuada uma demonstração publicitária do nosso catálogo de 2003" [i.e., ninguém, em princípio, será torturado até se comprometer a comprar um conjunto de objectos inúteis...]. A Mãe Frias tem ainda a vantagem adicional de recolher viajantes aqui pelas minhas bandas (07h20 na Alameda).
Estou quase, quase convencido. Continuo a ler os dois prospectos e é então que surgem os dois argumentos que, em definitivo, não só me fazem optar pela Mãe Frias como a tornam num ícone inultrapassável dos fins-de-semana económicos: não só é significativamente mais barata que a viagem promovida pelos tristonhos espanhóis da Vefa (38,50€ vs. 39€) como, acima de tudo, dá, quase sem se dar por isso, o seguinte conselho: "Este passeio é recomendado apenas a pessoas com mais de 25 anos." Onde já vai a minha imaginação...

sexta-feira, novembro 05, 2004

Pensar Viseu?


Pensar o futuro é inerente à condição humana. De forma mais ou menos estruturada, com maior ou menor consciência, tomamos as nossas decisões com base numa antecipação (ainda que tácita e inconsciente). Se fizermos o exercício de retirar das nossas opções tudo o que, de uma forma ou de outra, tem a ver com o futuro, facilmente constatamos que pouco ou nada resta. O mesmo acontece com os territórios e com os diversos tipos de “entidades territoriais” que sobre ele projectam o seu poder de decisão e execução. Assim, sejam elas juntas de freguesia, municípios, regiões administrativas, órgãos/departamentos do poder central ou mesmo instituições/departamentos supranacionais, os actores territoriais decidem e executam com base numa certa ideia de futuro (tendo em conta os seus próprios interesses e/ou o interesse geral).
É neste contexto que os instrumentos de Prospectiva podem ser particularmente úteis. De facto, estas metodologias parecem reganhar importância no caso do Território, não só pelo dinamismo que incutem nos agentes (o futuro como espaço de discussão; o debate projectado) mas, sobretudo, pela maior facilidade, em termos gerais, de delimitação da estrutura subjacente ao sistema, i.e. dos actores, dos processos e das suas inter-relações.
É da capacidade de estruturar um pensamento sobre o futuro, incorporando-se no Planeamento Estratégico e “refrescando-o”, que surge o sucesso de muitos dos exercícios de Prospectiva Territorial. Por exemplo, reflectir sobre a cidade de Viseu no ano de 2015, não só transmitiria uma imagem de modernidade e dinamismo como, acima de tudo, incutiria nos agentes mobilizados para essa discussão um movimento de transformação potenciador de uma aproximação a uma cenário desejado ou a uma visão.
É assim que fazem, de forma recorrente, a Catalunha, o País Basco, a maioria das regiões francesas e inglesas e a Finlândia (só para citar alguns exemplos).
Para onde nos levam as tendências globais e regionais? Como afectam elas a nossa cidade? Como nos podemos situar face a elas? O que temos que transformar? Quais são as maiores incertezas que nos afectam? Quais as concretizações possíveis para essas incertezas? Que elementos podemos tomar como certos em 2015? Estas são algumas das perguntas genéricas que urge colocar. Reagir já não é suficiente. É a antecipação, evitando ao máximo ser surpreendidos, que nos pode trazer vantagens comparativas.
O que acontecerá quando (e se) o financiamento das autarquias deixar de estar dependente dos índices de construção do território? Quais as transformações expectáveis da implantação da nova Universidade? Como potenciar os seus benefícios? Não preparar hoje as respostas a estas questões (indicadas apenas a título de exemplo) é correr o risco de outros o fazerem, perdendo-se assim oportunidades de desenvolvimento/transformação da cidade e da região.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Autofagia


A integração europeia alcançou muitos feitos. Colocou alemães e franceses a discutir à mesma mesa (muitas vezes a discutir como se gastaria/investiria o dinheiro dos alemães, é verdade, mas não deixavam de estar à mesma mesa...), sustentou um processo de desenvolvimento notável a partir das ruínas (físicas e psicológicas) do pós-2ª Guerra Mundial, recolheu no seu seio jovens democracias recém libertadas de ditaduras (à direita e à esquerda).
A União Europeia (UE) parece enfrentar, no entanto, um dilema: o que de mais importante tem para oferecer é a “adesão ao seu clube” mas, à medida que mais e mais países vão entrando, o “presente” é cada vez menos atraente. A integração europeia, neste sentido, está-se a consumir a ela própria, espécie de autófago que se alimenta, degradando-se, do seu (relativo) sucesso económico.
E isto acontece por uma razão muito simples: desde 1973 entraram para o “clube” 3 países mais ricos do que a média dos Estados-membros (Finlândia, Áustria e Suécia) e 13 mais pobres: Grécia, Portugal, Espanha, Polónia, República Checa, Hungria, Eslovénia, Eslováquia, Estónia, Letónia, Lituânia, Malta e Chipre. Os próximos serão Bulgária e Roménia. Depois a Turquia. Depois a Croácia. Depois, talvez, Sérvia e Montenegro (juntos ou separados, com ou sem o Kosovo).
E o processo parece imparável. Como convencer a Turquia a reformar-se e, por exemplo, a não colocar na prisão as mulheres adúlteras? Prometendo a adesão, claro. Como convencer sérvios, montenegrinos e kosovares a conviverem em paz (ou, pelo menos, a separarem-se em paz)? Prometendo a adesão, claro. E assim sucessivamente.
Eu não sou contra qualquer alargamento. Não quero ser mal interpretado. Apenas me parece que a antiga dicotomia expansão vs. aprofundamento faz cada vez mais sentido. O que pode causar problemas. Problemas, por exemplo, para quem quer uma UE a falar a uma voz única nas relações internacionais e problemas, outro exemplo, para quem quer uma Comissão Europeia forte e capaz de se impor aos Estados.
Longe estamos da Comissão Delors. Que saudades do tempo em que um francês dirigia os gastos/investimentos com origem no dinheiro da Alemanha Ocidental! Só que essa era uma Alemanha ainda sem o fardo económico da reunificação e com o fardo psicológico do holocausto muito mais presente. O último “luxo” obtido pelos franceses terá sido o despojamento alemão relativamente à “cedência” do Marco (e da respectiva credibilidade nos mercados, claro).
Hoje, UEM e Política de Segurança e Defesa são, ao contrário do que foi o Mercado Único, basicamente geridas pelos Estados. E é por isso que só timidamente a Política Comum de Segurança e Defesa se afasta da NATO. E também é por isso que o Comissário Joaquín Almunia apresentou a sua proposta de flexibilização do Pacto de Estabilidade e de Crescimento (já que poucos Estados-membros cumpriam...).
A inércia parece levar-nos para uma UE mais minimalista, longe do sonho federalista dos “Estados Unidos da Europa”, em que os interesses internos à UE são cada vez mais díspares e o “presente” da adesão é cada vez menos saboroso (basta pensar que as condições de adesão dos 10 Estados que entraram na UE este ano foram, para pior, bem diferentes, por exemplo, das de Portugal e Espanha em 1986).
Uma viragem, no entanto, pode ocorrer. Um grupo restrito de Estados-membros da UE, necessariamente incluindo (liderados) a (pela) França, pode decidir avançar para níveis mais fortes de integração em várias áreas. Mas aí a coordenação entre várias “Europas” que decidem a velocidades diferentes será cada vez mais complexa. Já temos uma Europa do Euro (sem o RU, a Dinamarca e a Suécia). Já temos uma Europa de Schengen (com a Islândia e a Noruega mas sem o RU e a Irlanda). Passaremos a ter uma Europa da Política de Segurança e de Defesa. Uma Europa da Justiça e dos Assuntos Internos. Uma Europa disto e uma Europa daquilo.
No fundo, estranhamente, a cada alargamento a UE consome aquilo que de mais precioso tem para oferecer: um projecto de desenvolvimento. Haverá outra alternativa?

sexta-feira, setembro 10, 2004

Quando começamos?


A Prospectiva parte de uma premissa fundamental: o futuro não está escrito, pelo que as nossas acções hoje, inseridas num determinado contexto, moldam o mundo, o país, a região e a cidade onde vamos viver amanhã.
A mesma leitura surge dos trabalhos de José M. Félix Ribeiro1 que, embora tematicamente diversificados, são atravessados por uma mensagem muito simples: nós (portugueses) podemos escolher o nosso caminho. Quem, como ele, trabalha de forma séria sobre o futuro (e, logo, sobre o presente que o constrói) não tem como objectivo central acertar nos pormenores. O que interessa é abrir caminhos, explorar incertezas, analisar forças e tendências. Não ser surpreendido (pelo menos não o ser demasiado frequentemente).
Podemos escolher, diz ele.
Podemos, por exemplo, realizar com ânimo as reformas estruturais (entre outras coisas, flexibilizando o mercado de trabalho sem pôr drasticamente em causa a estabilidade dos cidadãos) ou podemos continuar como estamos.
Podemos, por exemplo, revolucionar o sector do imobiliário (regulamentando o acesso, responsabilizando os promotores, diversificando a oferta, promovendo a qualidade, tornando-o mais líquido, introduzindo elementos controlados de mercado nas reservas ecológicas, alterando o tipo de receitas próprias das autarquias) ou podemos continuar como estamos.
Podemos, por exemplo, liberalizar o ensino superior, fomentando a integração de Universidades portuguesas em grandes Universidades internacionais, ou podemos continuar como estamos.
Podemos, por exemplo, abrir à concorrência os principais sectores infra-estruturais (atraindo actores inovadores e fomentando o investimento em telecomunicações/Internet) ou podemos continuar como estamos.
Podemos, por exemplo, apostar num grande aeroporto internacional, capaz de funcionar 24 horas por dia, de receber em simultâneo vários dos maiores aviões e de se expandir se necessário, ou podemos continuar como estamos.
Assim, podemos, por exemplo, atrair para Portugal grandes universidades internacionais e centros de back office, I+D e/ou produção avançada de grandes grupos europeus e americanos e consolidar clusters em sectores como a farmácia/saúde e comunicações/multimédia.
Ou seja, podemos tornar-nos “globais”, “digitais”, “verdes”, “flexíveis”, “leves”, “densos em valor”, “competentes” e “inovadores”. Quando começamos?

1 Ver alguns dos seus textos em http://www.dpp.pt/

sexta-feira, agosto 20, 2004

A nossa nova Constituição


Há pouco mais de um mês, os Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-Membros (EM’s) da União Europeia (UE) acordaram, em Bruxelas, a assinatura do Tratado Constitucional da UE (vulgo “Constituição Europeia”).
Da antiga Comunidade Económica Europeia (CEE) e da actual estrutura em pilares (cada um deles com regras próprias), os nossos representantes “prometeram” evoluir para uma UE una, um Tratado uno (é verdade que alguma da legislação mais importante se encontra espalhada pelos 36 protocolos e 2 anexos adjacentes ao Tratado – ou deverei escrever “Constituição”?), com uma bandeira azul com doze estrelas, um hino (o último andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven), um lema (“unida na diversidade”), uma moeda (o euro) e um dia (9 de Maio2).
Herdeira do Tratado de Roma (1957) em que “os 6” instituíram a CEE, do Acto Único Europeu (1986) que deu corpo ao Mercado Único e do Tratado de Maastricht (1992), “pai” do euro e dos avanços na Política Externa e de Segurança e na Justiça e Assuntos Internos, a “nossa3 nova Constituição” permite, pelo menos, simplificar e codificar num documento menos desconexo, a amálgama constituída pelos Tratados sucessivamente assinados pelos EM’s desde 1957.
Na expectativa de um referendo em Portugal que ratifique a Constituição Europeia4, sugere se como leitura de férias esta peça em quatro actos (I – Objectivos, competências e instituições; II – Carta dos Direitos Fundamentais; III – Políticas e Funcionamento da União; IV – Disposições Gerais e Finais) que resultou, em grande medida, do trabalho de uma Convenção “representativa dos povos da União” . De facto, apesar dos Chefes de Estado ou de Governo terem aprovado uma versão diferente da que foi proposta pela Convenção Europeia liderada por Giscard d’Estaing (limitando a ambição do texto original), não deixa de ser verdade que a grande maioria do texto resultou da referida proposta.
É que, devagar, devagarinho, já são os tais “senhores em Bruxelas” que têm competência exclusiva nas regras da livre concorrência aplicáveis às nossas empresas, na política monetária da moeda que utilizamos, na política comercial comum que as nossas empresas enfrentam no relacionamento com países terceiros, nas regras da união aduaneira onde nos situamos e, após entrada em vigor da Constituição, na conservação dos recursos biológicos do nosso mar. E estes são apenas alguns exemplos para vos aguçar a curiosidade (que, tenho a certeza, já é enorme).
Boa leitura.


2 Em memória do dia 9 de Maio de 1950 em que Robert Schuman apresentou a “Declaração Schuman” como proposta de criação de uma Europa organizada, sendo considerada o início da criação do que é hoje a UE.
3 “Nossa” até porque, como é sabido, o direito comunitário prevalece sobre o direito nacional.
4 Para entrar em vigor, a Constituição Europeia deverá ser ratificada (pela via parlamentar e/ou referendária) por todos os EM’s da UE.

sexta-feira, abril 09, 2004

A China e o Petróleo


A China: após o fim da Guerra Civil, a constituição formal da República Popular da China de Mao Tsé‑tung ocorreu em 1949. Pouco tempo depois, na Ásia do Sudeste, o choque entre os interesses chineses e norte-americanos leva à internacionalização da Guerra da Coreia (mas já aí, e apesar do elevado número de baixas, a contenção funcionou, mantendo‑se a Guerra da Coreia como uma guerra de proporções regionais). A China de Mao Tsé-tung encetou seguidamente a “Revolução Cultural” que acabou por morrer com o seu criador em 1976. A partir daí solidificou-se o caminho chinês (já iniciado, embora provavelmente de forma inconsciente, com o comunicado sino‑americano de Xangai - 1972, marco da conjunção de interesses entre China e EUA face ao gigante soviético) na direcção de um modelo pragmático de incorporação do “mercado” no socialismo, constituindo-se, na actualidade, como um actor inultrapassável numa reflexão sobre a evolução do mundo no século XXI.
O petróleo: é inegável que o “ouro negro” tem feito jus à comparação com o metal precioso. Em 1973, a concertação no que toca à limitação da produção e à subida (para o dobro) do preço do barril (com base na critica ao expansionismo de Israel e às regras do comércio internacional) protagonizada pela OPEP levou a uma crise económica de grande significado na economia das potências Ocidentais (com a dos EUA à cabeça). Mas já antes (1970), os EUA tinham atingido o máximo da sua produção de petróleo (peak oil), o que é classificado por alguns autores[1] como o acontecimento económico mais importante dos últimos cinquenta anos: estava para acabar a supremacia norte‑americana (obtida através da produção em solo dos EUA) sobre o mercado internacional do petróleo – o que ficou dramaticamente claro, como já referi, três anos mais tarde. Mas o petróleo também foi usado com mestria pelos EUA (sobretudo por Reagan a partir de 1981) durante a “corrida ao armamento”, não só tentando negar aos soviéticos o acesso a alguns equipamentos importantes para a exploração petrolífera como, sobretudo, apoiando conflitos regionais desgastantes para a URSS (ex.: Afeganistão) e incentivando a Arábia Saudita a vender petróleo (muito e barato) de forma a dificultar o financiamento por parte da URSS, via receitas petrolíferas, da corrida ao armamento. Finalmente, em 1987 (pouco antes da brutal queda da economia soviética que antecedeu o desmantelar do império), a URSS atingiu o seu peak oil. E hoje o petróleo volta a estar no centro das atenções, não só devido às especulações sobre as razões da intervenção dos EUA no Iraque mas também em consequência do crescente consenso relativamente ao facto da verdadeira questão sobre o peak oil global ser “quando vai ter lugar?” e não “será que vai acontecer?”.
A China e o petróleo: é quase de senso comum a consideração da China, um país que não produz petróleo, como uma certeza do novo século em termos de desenvolvimento económico e potencial estratégico; é também senso comum que o alcançar do peak oil global dificilmente deixará de comportar graves consequências ao nível económico e social - bastando para tal pensar na dependência industrial relativamente ao crude; menos comum será pensar que as elevadas taxas de crescimento económico e de urbanização/industrialização que têm ocorrido na China podem revelar-se insustentáveis com o barril de petróleo, por exemplo, a custar 80 dólares. E aí, porque não, a própria solidez do imaginativo modelo chinês pode ser posta em causa com graves consequências não só para a China mas também, como facilmente se compreenderá, para a economia global.


[1] Ver, por exemplo, HEINBERG, Richard – Smoking Gun: The CIA’s Interest in Peak Oil. In CAMPBELL, C.J.; HILL, Staball, comp. – “ASPO Newsletter No 33 – September 2003”, pp.7-8 (disponível em http://www.cge.uevora.pt/energia/Newsletter33.doc).

sexta-feira, março 05, 2004

Quem és?


Não é fácil falar em civilizações hoje em dia. Ou melhor, não é, acima de tudo, politicamente correcto fazê-lo. Desde que Samuel Huntington publicou, no Verão de 1993, o famoso artigo em que lhes associava a palavra “choque” que a discussão em torno destas entidades milenares tem sido encarniçada. A conjuntura política internacional (Afeganistão, Israel/Palestina, Iraque, 11 de Setembro, Coreia do Norte, etc.) não é, obviamente, alheia ao referido entusiasmo.
Utilizando esta grelha de leitura como alternativa possível face às críticas dirigidas a uma análise com base puramente no Estado‑Nação, proponho um breve olhar sobre a lógica das civilizações na óptica do “proponente-regulador” Ocidental.
Olhando para o Mundo, parece claro que a chamada Civilização Ocidental não forma um todo coeso e muito menos indistinto, podendo ser dividida, por exemplo, entre europeus e norte‑americanos e entre católicos e protestantes. Está relativamente próxima de judeus (com poder muito relevante não só em Israel mas também nos EUA, no Reino Unido e na Holanda) e de ortodoxos (este últimos divididos entre gregos e eslavos). Tal como acontece na maioria das religiões, também os católicos podem ser divididos entre progressistas e integristas, sendo igualmente de realçar a crescente importância dos Evangélicos em países como o Brasil e os EUA.
O Ocidente “gere” a sua relação com ortodoxos fundamentalmente através da segurança (e.g. alargamento da NATO), da integração económico-política (e.g. UE) e do Investimento (e.g. boom dos fluxos de Investimento Directo Estrangeiro (IDE) dos anos 90). É também o IDE que mais aproxima o Ocidente e o mundo confuciano com uma percepção global de que o gigante adormecido Chinês está a acordar muito rapidamente (veremos se as reservas internacionais de hidrocarbonetos o permitirão). O mesmo sucede entre Índia hindu e Ocidente (e.g. importância do IDE na Índia no apaziguar das tensões com o Paquistão), entre Japão e Ocidente (com a diferença central de que o Japão partilha com o Ocidente as grandes decisões de regulação económica e financeira global) e entre América Latina e Ocidente (a ALCA é apenas uma das tentativas).
África, essa, parece continuar a estar um tanto esquecida sendo no entanto de acompanhar a emergência de alguns países como produtores significativos de petróleo (África Ocidental) e o papel geopolítico desempenhado por países africanos pertencentes à civilização islâmica (como a Líbia, o Egipto e o Sudão). Esta última civilização, no centro do furacão geopolítico mais recente, está profundamente dividida. Alguns exemplos: Xiitas vs. Sunitas; Árabes vs. Turcos vs. Malaios vs. Persas. A Turquia faz parte da NATO e é candidata à adesão à UE. A Indonésia é um aliado dos EUA (o mesmo sucede com Marrocos, o Egipto e a Arábia Saudita - embora a relação entre este Estado onde se situam os lugares santos do Islão e os EUA se tenha deteriorado muito desde o 11 de Setembro). O Paquistão é um parceiro (embora “fugidio”). O Iraque está, neste momento, sob controlo de forças dos EUA.
De qualquer forma, parece inegável que a pergunta “Quem és?” substituiu “de que lado estás?”, questão tradicionalmente ligada a conflitos profundamente ideológicos como a Guerra Civil de Espanha, a Guerra Fria ou mesmo a 2ª Guerra Mundial. O problema é que “Quem és?” sofre de uma rigidez (e, desta forma, de uma periculosidade) bem mais acentuada...

[2] Ver Boniface, Pascal: “Guerras do Amanhã”, Editorial Inquérito, 2003; Huntington, Samuel P. [et al.]: “O Choque das Civilizações – O debate sobre a tese de Samuel P. Huntington”, Gradiva, 1999; Huntington, Samuel P.: “O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial”, Gradiva, 1999.