sexta-feira, agosto 30, 2002

David Lynch e a sucessão do Papa


Em casa da minha família sempre se recebeu (e ainda se recebe) o Jornal da Beira, periódico de matriz católica profundamente enraizado na nossa região. Habituei-me a olhar para as suas notícias imaginando, intimamente, os respectivos redactores e tentando compreender a forma como a religiosidade se funde com a análise jornalística, moldando-a e dando-lhe contornos profundamente místicos. Para os mais cinéfilos, diria que é quase uma visão transformadora da realidade em “imagens” que a simbolizam, semelhante ao imaginário criado, ao longo dos seus filmes, por David Lynch. Mas isto é apenas um pequeno aparte, motivado pela óptima sensação que é poder escrever estas linhas sabendo que as minhas limitações são “só” de cariz racional, cultural e intuitivo...

Numa altura em que a Igreja Católica, conscientemente, tenta preparar a sucessão de João Paulo II (o qual, embora ainda dotado de enorme lucidez, está cada vez mais débil fisicamente), a instituição em causa tem sofrido grandes críticas (particularmente nos EUA) derivadas do sucessivo envolvimento de alguns membros seus (em diferentes posições da hierarquia) em casos de pedofilia. Pode estar, assim, criado um “caldo” que faz com que esta instituição, o mais forte e organizado dos ramos judaico‑cristãos que moldaram grande parte do mundo contemporâneo, sofra renovadas turbulências aquando da referida sucessão.

Se o próximo Papa for alguém representativo da parte crescente da cristandade situada no “Sul” do planeta, mais tradicionalista e conservadora, é possível um acelerar do clima de crispação no “Norte”, baseado em “bandeiras” como o fim do celibato dos padres e a ordenação de mulheres. Um eventual descontentamento surgiria (como já surge, aliás, a espaços) provavelmente dos EUA e da Alemanha, curiosamente (por não serem países de maioria católica) os dois principais contribuintes financeiros do Vaticano. De referir que uma futura postura conservadora indiciadora da ruptura em causa pode também estar presente em candidatos como o actual arcebispo de Milão, Dionigi Tettamanzi.

Se o sucessor for alguém representativo do “Norte” e a Igreja Católica enveredar pela senda de reformas mais ou menos profundas mas significativas, as dificuldades também se farão sentir, sobretudo ao nível da adaptação do meio local (sustentáculo da acção global da Igreja) mais conservador.

Isto (sucessão e divisão interna face a algumas questões estruturantes), associado à difícil conjuntura internacional do pós-11 de Setembro, ao eternizar do conflito Israelo‑palestino (onde a Igreja tem tido tendência a tomar posições pró‑Palestinianas), ao clima de pré‑ataque ao Iraque e à força do lobbie judaico na administração da hiperpotência, pode potenciar uma crise assinalável, de consequências dificilmente antecipáveis, num dos referenciais da civilização ocidental.

sexta-feira, agosto 23, 2002

Globalização: brrr, que medo!


Acho deveras interessante a forma normalmente leve e casuística com que se aborda e “navega” no conjunto interminável de fenómenos e conceitos à volta deste “ser imaginário” chamado globalização.
Um amigo dizia-me, há dias, que a globalização pode ser muita coisa (novas tecnologias, mundialização das empresas, surgimento de novos actores e economias concorrentes a nível global, etc, etc.) mas que, para ele, ela é, no limite, a criação de uma enorme pool de poupanças à procura do melhor investimento a nível global. Eu não podia estar mais de acordo.
Confesso-me um pouco cansado da sucessiva politização do fenómeno. É a ideia da “má globalização”, aproximação a uma teoria da conspiração (viram o Matrix?) que parece acreditar que, algures do outro lado do Atlântico estão um conjunto de senhores vestidos de negro a jogar, a seu belo prazer, uma espécie de monopólio da globalização. Parece, às vezes, que vivemos todos na inconsciência de que somos explorados por um punhado de espertalhões que mais não querem que nadar, à tio Patinhas, num cofre cheio de dinheiro (obtido, inapelavelmente, por vias travessas, claro está) e, obviamente, despedir pessoas (de preferência muitas, milhares se possível). A globalização é, assim, uma “coisa” (quase um objecto de arremesso) acentuadamente má, que aumenta a pobreza, enriquece os ricos, mata as crianças de fome, cria guerras injustas, provoca desastres ambientais e, claro, despede pessoas, trabalhadores (aos milhares). Pergunto a mim próprio se, eventualmente, não será o próprio Homem o causador de alguns destes problemas. Porquê atribuí-los, então, ao “bicho papão” a que se chama globalização?
Como já devem ter adivinhado não acredito numa má (nem numa boa, diga-se de passagem) globalização. Ela é constituída, na minha perspectiva, por um conjunto de fenómenos que marcam fortemente a sociedade contemporânea (paralelamente à regionalização e à fragmentação geopolítica, por exemplo), comportando inúmeras potencialidades, positivas e negativas, a prazos variados. Assim, quando se tentam encaixar interpretações ideológicas numa realidade complexa, ensaiando simplificá‑la e interpretando-a à luz de conceitos frequentemente do passado, o resultado é, normalmente, de fraco alcance.
É que, pasme-se, a globalização (mesmo a sua definição mais “neo-liberal” e redutora que se possa imaginar) também tem facetas muito positivas e, pasme-se ainda mais, estabilizadoras do mundo em que vivemos. Duas perguntas que servem de exemplos: (1) alguém conscientemente duvida que o massivo Investimento Directo Estrangeiro na Índia (fundamentalmente nas indústrias do software e das tecnologias de informação) – que tornou este país fortemente dependente do Mundo e o Mundo dele – teve um papel apaziguador do conflito Indo-Paquistanês (duas potências nucleares) relativamente à região de Caxemira? (2) alguém conscientemente duvida que o capital estrangeiro presente em Taiwan e a progressiva abertura da China à economia mundial (com, por exemplo, a respectiva entrada na Organização Mundial do Comércio) são indissociáveis do controlo do estado de “tensão” em que se encontram, há vários anos, as complicadas relações entre estes dois actores?
Estes e outros exemplos levam-me atrevidamente a pensar que, se calhar, a globalização também tem algo de “bom”, pela interconectividade que comporta, pela estabilidade que (também) provoca.

sexta-feira, agosto 09, 2002

A pequena “grande” Holanda

Normalmente são apontados seis Estados-membros (EM’s) como os mais poderosos de uma futura União Europeia (UE) alargada a Leste: Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Espanha e Polónia. No entanto, a Holanda, quer através da sua centralidade intrínseca quer através da especial influência que exerce no Benelux deve ser, na minha perspectiva, incluída nesse grupo restrito. É de notar, a título de curiosidade, que o Benelux imiscui-se claramente entre os “grandes” aquando da definição, no Tratado de Nice (ainda não em vigor), da futura ponderação dos votos no Conselho e da composição das outras instituições. No Conselho, por exemplo, Alemanha, Reino Unido, França e Itália terão 29 votos, sendo que o Benelux, no seu conjunto, possuirá exactamente o mesmo número. Espanha e Polónia terão 27. No entanto, os votos constituem, segundo o novo Tratado, apenas um dos critérios de votação. Um outro será o número de Estados sendo que, neste último critério, o Benelux, obviamente, conta por três...
Nesta perspectiva, evoluções nas posições da Holanda (país fundador da UE que, historicamente, tem vindo a apostar fortemente no processo de integração) podem ter consequências para o processo de integração europeia de muito maior alcance do que as que a respectiva dimensão eventualmente faria supor.
Membro “natural” do núcleo fundador da União Económica e Monetária, a Holanda encontra-se quer entre os maiores defensores do rigor orçamental e do cumprimento do Pacto de Estabilidade e Crescimento, quer entre os mais cépticos relativamente à necessidade de criar um pólo de poder que equilibre, no que toca à Política Económica, a influência do Banco Central Europeu. Contribuindo mais que França e Itália para o “magro” orçamento comunitário, a Holanda tem especial interesse em reformas das Políticas Comuns (a Política Agrícola Comum é apenas um dos exemplos – o mais premente neste momento) que obstem a um significativo crescimento orçamental (e, logo, das suas contribuições) no pós-alargamento da UE. Isto não quer dizer que a Holanda seja céptica em relação a este processo. De facto, ela é um dos EM’s mais favoráveis a um alargamento amplo da UE aos países da Europa Central, Oriental e Báltica, sendo já muito assinaláveis os fluxos de investimento holandês que têm esses países como destino. Tradicionalmente próxima dos EUA, a Holanda é igualmente favorável ao alargamento da NATO, revendo-se numa Política Europeia de Segurança e Defesa que seja complementar (mais do que concorrencial) com a actuação dos EUA no mundo e em políticas na área da Justiça e Assuntos Internos que consubstanciem um reforço das responsabilidades europeias no combate ao terrorismo e à imigração ilegal.
Assim, a Holanda constitui-se, cada vez mais, como peça fundamental da “engrenagem” europeia, desempenhando um papel de actor charneira (simultaneamente influente e dependente), de ligação entre os múltiplos elementos do sistema UE. Sem dúvida, um actor a considerar por Portugal nas suas opções europeias, atrevendo-me mesmo a levantar uma questão um pouco provocatória nos tempos que correm: deverá Portugal continuar claramente focado na “frente ibérica” (de forma a garantir um parceiro forte em tudo que esteja relacionado com fundos comunitários – pelo menos a curto prazo) ou poderá o nosso país proceder a uma diversificação das suas opções estratégicas, optando, por exemplo, por tentar fazer crescer (cedendo em algumas questões e optando por um conjunto – difícil – de reformas) a relativa convergência de posições que tem com o Benelux liderado pela Holanda?

sexta-feira, agosto 02, 2002

A estranha esquizofrenia de “nuestros hermanos”


A Espanha tem sido um aliado de Portugal na maior parte das negociações com a União Europeia (UE), especialmente no que toca aos fundos comunitários que de forma tão visível entraram nos países peninsulares durante as últimas décadas. Compreensivelmente, Portugal teve tendência para aproveitar este relativo conforto de saber que tinha a seu lado um Estado com potencialidades de se tornar, à medida do acelerar do crescimento económico e da força estratégica, um dos “grandes” da UE. Só que este “conforto”, esta espécie de ombro amigo em que a diplomacia portuguesa em Bruxelas e Estrasburgo tende a repousar, tem revelado, aqui e ali, algumas posições dissonantes com a pacatez de uma certa ideia da Ibéria unida (por objectivos) e solidária.

De facto, a Espanha é, já hoje, um actor muito influente no “palco” europeu. No entanto, a sua acção é, por vezes, marcada pelo carácter algo “esquizofrénico” das suas posições, ao ambicionar, simultaneamente, fazer rapidamente parte do grupo dos “grandes” e protelar o mais possível a sua tradicional posição de “país da coesão” receptor de fundos. Face a esta renovada imprevisibilidade de “nuestros hermanos”, as posições portuguesas parecem eivadas de uma certa perplexidade. A Espanha país de coesão interessa-nos, obviamente. Acalma-nos. Constitui-se como um aliado na cada vez mais complicada “luta” pelos fundos comunitários, na afirmação da argumentação de que a UE é, acima de tudo, um exercício colectivo de solidariedade e estabilidade europeias. A Espanha que quer ser grande nos votos, a Espanha das negociações do Tratado de Nice, assusta-nos profundamente. O nosso calmo aliado nestas coisas da Europa, “de repente”, quer mais votos no Conselho, quer maior peso para o critério demográfico e assume, aparentemente em definitivo, um lugar entre os “grandes” (Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha), líderes e definidores “naturais” dos rumos do processo de integração.
É com esta “nova” Espanha em transição que Portugal tem de lidar. Uma Espanha cada vez menos pobre e defensora da coesão (embora “Madrid”, o centro, continue a necessitar dos fundos para financiar uma parte das transferências para as regiões menos desenvolvidas do território espanhol) e cada vez mais líder e parte fundamental do “núcleo duro” que tanto assusta os “pequenos” Estados-membros (EM’s) da UE mas que tendencialmente se afirmará numa UE com 25, 27 ou mais países. É uma Espanha que ambiciona ser uma potência europeia e atlântica, que investiu maciçamente na América Latina e que se apercebeu que o seu maior activo externo pode vir a ser a comunidade hispânica nos EUA e que as telecomunicações e a internet tornam essa comunidade acessível aos serviços e conteúdos espanhóis.

É esta Espanha, simultaneamente potencial centro de gravidade da UE e da América Latina que nos confunde. É esta Espanha, ainda hoje dotada de uma estranha esquizofrenia nos fóruns europeus que nos deixa perplexos.