sexta-feira, fevereiro 21, 2003

A Favor ou Contra?


É uma evidência que a aferição do poder dos actores estratégicos internacionais não pode ser realizada sem ter em conta, em cada caso concreto, o atrito do meio (de natureza moral e/ou material) que “actua” sobre os potenciais mássico (quantidade de efectivos militares, por exemplo) e dinâmico (forças morais ou intangíveis). A natureza moral desse “atrito” é, na minha perspectiva, particularmente relevante para a situação internacional que se vive presentemente em relação ao Iraque, bastando olhar para a argumentação das partes para tomar consciência dessa importância.
De facto, argumentos como a protecção dos direitos humanos, a democracia, o respeito pela “legitimidade internacional”, etc., são utilizados amiúde com o claro objectivo de “conquistar”, através de uma certa ideia de “moralidade internacional”, a opinião pública global (e, necessariamente, nacional). As múltiplas iniciativas, a nível mundial, da chamada “sociedade civil”, regra geral contrárias à intervenção dos EUA no Iraque se realizada sem o aval da Organização das Nações Unidas (ONU), são componentes (inconscientes ou não) da referida competição. Intimamente ligada à questão do poder mediático, parece-me ser com esta contextualização que melhor se perceberá a perseverança dos EUA em alcançar um aval do Conselho de Segurança da ONU no que concerne a uma intervenção militar no Iraque.
Nesta linha de raciocínio, o poder mediático surge, na actualidade (pelo menos no que comporta de “necessidade de aparência”), ligado “em rede” à defesa de alguns “valores” tidos como fundamentais e reflectidos numa aproximação a um código de conduta nas relações internacionais (ou, pelo menos, na componente “mais exposta” dessas relações). É assim (e apenas assim) que se poderá entender o “show-off da apresentação de provas”, em directo para todo o mundo, a partir da sede da ONU, por Collin Powell e o constante jogo de palavras (a nível global, nacional e local) entre partidários ou oposicionistas a uma nova intervenção militar liderada pelos EUA no Iraque. É esta dialéctica simplista que tudo “consome” que urge, apesar das dificuldades, evitar, analisando com tanto afastamento quanto possível as forças em jogo no conturbado palco das relações internacionais contemporâneas. Não deixa de ser curioso notar, contudo, que esta percepção da dificuldade de discernimento no seio de uma miríade de informações muitas vezes contraditórias e inconsequentes, constitui claro sintoma do peso do referido “poder mediático”, assente em algo que eu me atreveria a classificar como “ânsia consumista de guerra” (no seu advento, execução e rescaldo), poder a corporizar (pelas partes desavindas) em reacções de apoio ou rejeição de princípio, bases de sustentação primária amplamente consolidadas, quer uma quer outra, por um dilúvio de argumentos disponíveis, perdoem-me a liberdade discursiva, no “mercado informacional”. Nesta óptica, é de salientar associação da ONU a uma certa ideia de “legitimidade internacional” (subtil mas poderosa em termos mediáticos). Daqui decorre, como já foi referido, o grande esforço (optimizado pela ameaça do unilateralismo) que os EUA têm realizado para tentar obter uma mais clara resolução do Conselho de Segurança da ONU (que lhes permita alcançar, entre outros dividendos, uma maior liberdade de acção) relativa à necessidade de travar o Iraque e aos meios passíveis de serem utilizados para tal.
Por tudo isto (e não só) tenho tendência a responder à pergunta inicial com outras interrogações: a favor ou contra o quê? Importa-se de me explicar?

sexta-feira, fevereiro 07, 2003

E depois?

Perdoem-me a heresia aparentemente belicista (não o sendo de facto), mas talvez por “desvio” profissional resolvi utilizar esta coluna para partilhar algumas reflexões e dúvidas (eventualmente mais dúvidas que reflexões) sobre a geopolítica e os equilíbrios geoestratégicos subsequentes a possíveis desfechos de uma 2ª Guerra do Golfo. Fugindo um pouco à actualidade, tentarei evitar as polémicas (sempre importantes, claro) sobre legitimidade ou ausência dela, intenções ou provas, direito internacional ou real politik, democracia ou petróleo, Organização das Nações Unidas ou George Bush, Blair ou Shroeder, eixos (franco-alemão) que “unem” ou cartas (de vários Chefes de Estado e de Governo europeus) acusadas de dividir (o que nunca esteve unido, aliás – a não ser que a opção fosse, como o é frequentemente, pela obtenção de um consenso via ambiguidade), etc.. Assim, começando hoje longe da Europa (da “nova” e da “velha”), situo-me para já na Ásia e no Médio Oriente.
Uma das subtis evoluções poderá ocorrer bem longe daqui, na Ásia de Leste. Aí, a posição do Japão face a um possível ataque liderado pelos EUA poderá acelerar a re-orientação do foco estratégico dos norte-americanos nesta zona do mundo, com a assunção pela renovada China, lentamente convertida ao capitalismo, de um papel de maior convergência com os interesses dos EUA na região (em detrimento do Japão que, por exemplo, também não se envolveu na coligação que acompanhou os EUA aquando da Guerra do Golfo “original”).
No Médio Oriente, por outro lado, será interessante observar o posicionamento da dinastia hachemita no poder na Jordânia. De facto, se na 1ª Guerra do Golfo se manteve afastada (até porque o objectivo dos EUA não era derrubar o regime de Saddam Hussein, pelo que um apoio jordano à resposta aliada significaria a criação de uma difícil inimizade com Bagdade), parece provável um maior envolvimento da Jordânia, ao lado dos norte-americanos, numa eventual 2ª Guerra do Golfo (participando no fornecimento de energia e, através de forças especiais, apoiando no terreno as acções militares dos EUA).
De facto, hoje, a situação é bem diferente daquela que se viveu há pouco mais de uma década. O prémio passou a ser nada mais nada menos que a “cabeça de Saddam”, pelo que a diplomacia jordana terá tendência a, desde já, preparar o caminho para uma “boa solução” (na óptica da Jordânia) relativamente ao futuro do Iraque. Essa “boa solução” poder‑se‑á mesmo transformar em “óptima” se, como alguns advogam, o modelo do pós-guerra tomar a Jordânia (crescentemente próxima dos EUA - e mesmo de Israel) como exemplo, ou mesmo como elemento central da resolução do “problema”. Essa possível (embora altamente complexa) “resolução” passaria eventualmente, nesta óptica, pelo restabelecimento de uma monarquia (hachemita) no Iraque, podendo a actual Jordânia “ceder espaço” para a criação do Estado palestiniano (aliviando a tensão com Israel). Voltarei, num próximo artigo, a este exercício especulativo sobre possíveis reequilíbrios geoestratégicos desta guerra eventual (que já vai bem longa...).