sexta-feira, outubro 01, 2004

Autofagia


A integração europeia alcançou muitos feitos. Colocou alemães e franceses a discutir à mesma mesa (muitas vezes a discutir como se gastaria/investiria o dinheiro dos alemães, é verdade, mas não deixavam de estar à mesma mesa...), sustentou um processo de desenvolvimento notável a partir das ruínas (físicas e psicológicas) do pós-2ª Guerra Mundial, recolheu no seu seio jovens democracias recém libertadas de ditaduras (à direita e à esquerda).
A União Europeia (UE) parece enfrentar, no entanto, um dilema: o que de mais importante tem para oferecer é a “adesão ao seu clube” mas, à medida que mais e mais países vão entrando, o “presente” é cada vez menos atraente. A integração europeia, neste sentido, está-se a consumir a ela própria, espécie de autófago que se alimenta, degradando-se, do seu (relativo) sucesso económico.
E isto acontece por uma razão muito simples: desde 1973 entraram para o “clube” 3 países mais ricos do que a média dos Estados-membros (Finlândia, Áustria e Suécia) e 13 mais pobres: Grécia, Portugal, Espanha, Polónia, República Checa, Hungria, Eslovénia, Eslováquia, Estónia, Letónia, Lituânia, Malta e Chipre. Os próximos serão Bulgária e Roménia. Depois a Turquia. Depois a Croácia. Depois, talvez, Sérvia e Montenegro (juntos ou separados, com ou sem o Kosovo).
E o processo parece imparável. Como convencer a Turquia a reformar-se e, por exemplo, a não colocar na prisão as mulheres adúlteras? Prometendo a adesão, claro. Como convencer sérvios, montenegrinos e kosovares a conviverem em paz (ou, pelo menos, a separarem-se em paz)? Prometendo a adesão, claro. E assim sucessivamente.
Eu não sou contra qualquer alargamento. Não quero ser mal interpretado. Apenas me parece que a antiga dicotomia expansão vs. aprofundamento faz cada vez mais sentido. O que pode causar problemas. Problemas, por exemplo, para quem quer uma UE a falar a uma voz única nas relações internacionais e problemas, outro exemplo, para quem quer uma Comissão Europeia forte e capaz de se impor aos Estados.
Longe estamos da Comissão Delors. Que saudades do tempo em que um francês dirigia os gastos/investimentos com origem no dinheiro da Alemanha Ocidental! Só que essa era uma Alemanha ainda sem o fardo económico da reunificação e com o fardo psicológico do holocausto muito mais presente. O último “luxo” obtido pelos franceses terá sido o despojamento alemão relativamente à “cedência” do Marco (e da respectiva credibilidade nos mercados, claro).
Hoje, UEM e Política de Segurança e Defesa são, ao contrário do que foi o Mercado Único, basicamente geridas pelos Estados. E é por isso que só timidamente a Política Comum de Segurança e Defesa se afasta da NATO. E também é por isso que o Comissário Joaquín Almunia apresentou a sua proposta de flexibilização do Pacto de Estabilidade e de Crescimento (já que poucos Estados-membros cumpriam...).
A inércia parece levar-nos para uma UE mais minimalista, longe do sonho federalista dos “Estados Unidos da Europa”, em que os interesses internos à UE são cada vez mais díspares e o “presente” da adesão é cada vez menos saboroso (basta pensar que as condições de adesão dos 10 Estados que entraram na UE este ano foram, para pior, bem diferentes, por exemplo, das de Portugal e Espanha em 1986).
Uma viragem, no entanto, pode ocorrer. Um grupo restrito de Estados-membros da UE, necessariamente incluindo (liderados) a (pela) França, pode decidir avançar para níveis mais fortes de integração em várias áreas. Mas aí a coordenação entre várias “Europas” que decidem a velocidades diferentes será cada vez mais complexa. Já temos uma Europa do Euro (sem o RU, a Dinamarca e a Suécia). Já temos uma Europa de Schengen (com a Islândia e a Noruega mas sem o RU e a Irlanda). Passaremos a ter uma Europa da Política de Segurança e de Defesa. Uma Europa da Justiça e dos Assuntos Internos. Uma Europa disto e uma Europa daquilo.
No fundo, estranhamente, a cada alargamento a UE consome aquilo que de mais precioso tem para oferecer: um projecto de desenvolvimento. Haverá outra alternativa?