sexta-feira, outubro 18, 2002

Defesa, dinheiro e ambições várias

Encontram-se em discussão pública as Bases do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) que deverão resultar, após “passagem” pela Assembleia da República e pelo Conselho de Ministros, num novo CEDN. Este, utilizando as bonitas palavras dos proponentes (Governo/Ministro da Defesa), deverá constituir‑se como “um poderoso factor de mobilização para um projecto nacional, que ajude Portugal, enquanto Estado, e os Portugueses, enquanto Nação, a preparar, com a segurança da sua identidade, o seu lugar num mundo que é diferente.”
Lendo as referidas “Bases”, um “leigo com algumas luzes destas matérias” fica com a sensação de que “está lá tudo” (e o que não está na letra está no espírito...): os objectivos permanentes, as ameaças (as que se podem nomear...), as principais alianças e áreas de interesse estratégico, os objectivos em termos de capacidades militares, etc. Contudo, numa altura em que sobe (novamente) a tensão entre chefias militares e governo, uma palavra surgiu-me quase inexplicavelmente quando lia as “Bases” e a sua panóplia de ambições: dinheiro. “Dinheiro” sem qualquer duplo sentido ou ironia mas sim no seu significado estrito, dotação orçamental para fazer face às ambições expressas. É aqui que, mais uma vez, parece estar o cerne da questão. Na minha perspectiva, “o limbo orçamental” que envolve as Forças Armadas (FA) dificilmente poderá ser relaxado. Mesmo com a generalização de uma certa “onda securitária”, as reticências são, atrever‑me‑ia, estruturais. De facto, na minha perspectiva, independentemente das vontades políticas e das ideologias no poder, muito dificilmente se alcançará um crescimento acentuado/sustentado das despesas militares. Não sou nem pacifista nem realista puro mas parece-me que o rigor e a eficiência preconizados no documento (outra coisa não seria de esperar) serão inevitavelmente acompanhados, no máximo, por um reduzido crescimento, em percentagem do produto, das dotações orçamentais dedicadas às FA. E, tendo em conta um contexto de afirmação do indivíduo em que os tradicionais intermediários (família, Estado, igreja,...) fraquejam e em que se assiste à “divinização do humano” (a que se refere Luc Ferry), mesmo esse reduzido crescimento tenderá a ser justificado, sobretudo, pela participação em operações multinacionais de paz. De resto, o Estado, actor central da Defesa e da “gestão da violência armada” está em profunda transformação (tal como, aliás, a nação), atravessado por forças poderosíssimas ligadas não só à dispersão de poder mas também a fenómenos demográficos e etnológicos como o envelhecimento, a imigração, o multiculturalismo ou a afirmação regional. O conceito de fronteira desvaneceu-se, encontrando-se o Estado (tradicional garante da segurança dos seus cidadãos) cada vez mais encurralado entre a força do macroregionalismo (a União Europeia, por exemplo) e as pulsões regionais no seu interior (veja-se o que acontece em Espanha, por exemplo). Assim, utilizando as palavras das “Bases”, o “lugar [de Portugal] num mundo que é diferente” será, acima de tudo, o seu lugar naquilo que eu chamaria o “jogo das novas fronteiras da participação”, complementando formas de actuação relativamente fáceis e passivas ligadas ao aproveitar de oportunidades (fundos comunitários, por exemplo) com actuações muito mais exigentes e inovadoras nos fóruns económicos, científicos, políticos e militares inter e transnacionais. Afirmar Portugal é também, parece-me, ter capacidade (e vontade) para “pensar o mundo” e para participar na acção sobre ele.

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