sexta-feira, junho 28, 2002

E, no fim daquela avenida, não havia uma estação?


A região autónoma espanhola de Castilla-La Mancha identificou, recentemente, 22 espaços e instalações de estações de caminho-de-ferro como estando protegidos pela lei de Património Histórico da referida região. Foi um sinal claro, no seguimento de vários outros, da importância atribuída pelo poder político (regional e espanhol, neste caso) à preservação de um património, as estações de comboio, que não se esgota quando se esgota a operacionalidade/rentabilidade financeira deste ou daquele trajecto, desta ou daquela ligação. De facto, o património das estações é, regra geral, muito mais vasto, não se reduzindo o seu valor aos números crus da quantidade de passageiros (será necessário, ainda, dizer isto?), da especulação imobiliária ou dos ciclos eleitorais.
As estações são, foram, desde o século XIX, locais de partida e locais de chegada. Mas não são, não foram, só isso. São também locais de encontro e essa sua faceta, independentemente da lógica preço-custo aplicada ao serviço de transportes, pode ser renovada, actualizada e/ou redimensionada, incorporando espaços carregados de memórias colectivas cada vez mais raras. Assim, “ser de Viseu”, por exemplo, não é só nascer na Maternidade do Hospital São Teotónio (o novo ou o velho), estudar no Liceu Alves Martins ou na “Escola Comercial”, passear no Rossio, na rua Formosa ou no Fontelo, fazer compras na rua Direita, namorar no Parque da Cidade, visitar o Museu Grão Vasco (e recordar o impacto daqueles olhos de São Pedro), etc., etc.. Era (utilizo, infelizmente, o passado) também ter passado pela Estação, local que se esgotou, eventualmente, como ponto de partida e de chegada mas que não se deveria ter alienado como espaço de partilha, de memória de uma colectividade que se identifica, ao longo do tempo, como viseense (no que de espacial tal comporta).
Não ponho em causa, obviamente, os argumentos técnicos (a inadequação – aliás muito contestada – da via estreita, o desconforto do equipamento, a questão da segurança) que culminaram na destruição da Estação de Viseu e na sua “substituição” por uma rotunda. Entristece-me apenas que esses e outros problemas não tenham sido abordados de uma forma construtiva que culminasse numa dupla permanência em Viseu: a do comboio, como meio racional e moderno de gestão dos fluxos de bens e pessoas, e a do património, parte da identidade de uma colectividade, da Estação. Entristece-me, no fundo, que Viseu se tenha constituído como uma excepção a um princípio claramente enunciado, não há muito tempo, pelo próprio presidente da Refer (Rede Ferroviária Nacional): “não vendemos património na proximidade do caminho‑de-ferro. Quem vende fica com o dinheiro e gasta-o. Quem mantém e recupera o património fica com esses activos e ainda pode ter receitas”.
Afinal parece que, no fim daquela avenida, havia uma estação. Agora, a fonte muda de cor e chegamos mais depressa, curiosamente pela “Avenida da Europa”, ao hipermercado. Bonito.

sexta-feira, junho 21, 2002

A Pensão, a Pistola e o Imigrante

Quando Zeus, sob a forma de touro, seduziu a jovem e bela princesa Europa, levando-a no seu dorso para Creta (e iniciando-se aí, segundo a lenda, a definição de uma civilização europeia independente da Ásia), dificilmente poderia imaginar que, se esta lenda fosse actualizada para os nossos dias, a jovem princesa se transformaria, provavelmente, numa senhora na casa dos sessenta anos a iniciar o seu período de reforma e à espera que o Estado lhe comece a pagar a pensão a que tem direito. É que a Europa (“princesas” incluídas) está a envelhecer...
Fala-se correntemente em Estado-providência e em envelhecimento da população. Para efeitos deste artigo, a componente do tradicional Estado-providência que está em causa é a faceta do modelo de capitalismo euro‑continental ligada aos sistemas de pensões e que se caracteriza pelo predomínio de pilares públicos financiados em regime de repartição, com benefícios definidos e assegurando uma substituição do rendimento. Relativamente à dinâmica de envelhecimento, ela consubstancia-se nos seguintes fenómenos: (1) o envelhecimento geral da população que coloca pressões adicionais sobre a população activa no suporte do grupo crescente dos cidadãos reformados; (2) o envelhecimento da população activa que provocará alterações na adequação dos perfis de conhecimentos/competências e na capacidade de aprendizagem; (3) o envelhecimento no seio da população idosa que consiste num aumento do “peso” dos cidadãos com 80 ou mais anos e que será acompanhado por um aumento dos níveis de consumo de serviços de saúde e das situações de invalidez e dependência.
Face a esta tríade de “envelhecimentos” (população mais velha, trabalhadores mais velhos e, mesmo, idosos mais velhos) o Estado‑providência exige uma maior canalização de recursos, o que põe os Estados europeus perante múltiplas escolhas. Uma delas, na minha perspectiva, é a escolha entre o Welfare e a promoção do desenvolvimento de uma defesa europeia autónoma. No referido contexto, a “vontade” política de desenvolver a autonomia estratégica europeia (face aos EUA) esbarra, inevitavelmente, na realidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento e num orçamento comunitário limitado a 1.27% do PNB comunitário. Esta é, na minha perspectiva, uma primeira zona de tensão.
Por outro lado, os “três envelhecimentos” podem levar os poderes públicos europeus a tentar colmatar esse facto com a abertura à entrada de uma população imigrante maioritariamente jovem e participante no esforço contributivo do país onde se insira. Esta possibilidade não é, no entanto, completamente clara, dada a dimensão (e as eventuais consequências dessa dimensão) de que teriam que se reverter estes fluxos migratórios para que a referida compensação fosse efectiva. De facto, uma segunda zona de tensão tem a ver com a resposta ao aumento das pressões demográficas via imigração, sendo que ela pode, nos extremos, levar a uma abordagem puramente comunitária do fenómeno “imigração” ou provocar um retorno às concepções estritamente nacionais da imigração (pondo em causa, por exemplo, o espaço de livre circulação de pessoas) que levem, subsequentemente, a conflitos potenciais em torno das visões externas dos Estados‑membros.
A UE aparece, assim, como um “gigante complexo de cruzamento de soberanias” entre actores (sejam eles instituições europeias, governos nacionais, ONG’s, autarquias, regiões, eleitores ou outros). Voltarei a entrar nesse “gigante” (por uma “porta” diferente) num próximo artigo.