Em artigos anteriores tenho chamado a atenção para a grande complexidade não só das interpenetrações entre os processos em curso na União Europeia (UE) mas também entre as preferências estruturais dos Estados-Membros (EM’s) (ou, num sentido mais abrangente, dos actores estratégicos) e entre os meios à disposição destes últimos para o “jogo” de poder inerente à actual fase da integração europeia. Ao mesmo tempo, tenho referido a particular indefinição que a conjuntura actual comporta, a qual se torna ainda mais visível em consequência não só da já muito discutida falta de liderança a nível europeu (de facto, longe parecem ir os tempos da dupla Kohl‑Mitterand e da Comissão Delors), mas sobretudo do facto de aparentemente não existirem, na actualidade, blocos estáveis de Estados mais influentes que funcionem como coesivos do todo e definidores da orientação geral da União. Mas nem tudo são “nuvens negras”. As diferenças de interesses entre as posições dos EM’s da UE também não parecem ser de natureza a impossibilitar, a priori, a obtenção de compromissos. Aliás, mais do que possíveis, esses compromissos parecem ser, de facto, necessários, surgindo aí um complexo “jogo” de possíveis “compensações” entre as múltiplas e frequentemente díspares preferências dos actores, parecendo estar em aberto um largo espectro de evoluções possíveis para o processo de integração europeia (tenho especulado sobre algumas delas nesta coluna). De facto, mesmo as medidas tomadas na última década (como, por exemplo, as que conduziram à União Económica e Monetária e ao euro) parecem mostrar que, apesar das referidas dificuldades, todas as opções estão, ainda, “em cima da mesa”.
Utilizando a terminologia clássica da teoria da Estratégia, o sistema europeu pode, na actualidade, considerar-se como multipolar, possuindo uma regra de equilíbrio que consiste basicamente na percepção de que a actuação de cada actor tem sempre em mente a oposição a qualquer coligação (que não o inclua, obviamente) ou a um actor isolado particularmente poderoso que tenda a assumir uma posição de predominância em relação ao resto do sistema, desequilibrando-o. Num sistema deste tipo muitas das alianças tenderão a ser específicas (às questões e aos processos em causa) e de curta/média duração.
Este contexto e a incerteza de rumo a ele associada confere ainda maior importância às idiossincrasias dos actores e a eventuais alterações das suas filosofias de actuação, ou seja, na minha perspectiva, as evoluções dependerão sobremaneira dos posicionamentos dos principais actores em “jogo” (e de eventuais alterações nesses posicionamentos). De referir, para terminar, que sou daqueles que acreditam que o processo de integração europeia não tem (felizmente) um destino preestabelecido (por muito que alguns o estabeleçam e/ou o desejem) e que o seu ritmo e direcção resultam não só de uma complexa negociação entre governos nacionais, mas também, embora de forma ainda marcadamente indirecta, entre outros actores infra e supra-estatais como as regiões ou os grandes grupos empresariais. Digo felizmente, assumindo claramente uma duplicidade composta de liberdade e de responsabilidade, acreditando que cabe a cada geração viver numa Europa por si moldada e não apenas pelas linhas de força da História.
sexta-feira, outubro 25, 2002
Europa: feliz complexidade
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sexta-feira, outubro 18, 2002
Defesa, dinheiro e ambições várias
Encontram-se em discussão pública as Bases do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) que deverão resultar, após “passagem” pela Assembleia da República e pelo Conselho de Ministros, num novo CEDN. Este, utilizando as bonitas palavras dos proponentes (Governo/Ministro da Defesa), deverá constituir‑se como “um poderoso factor de mobilização para um projecto nacional, que ajude Portugal, enquanto Estado, e os Portugueses, enquanto Nação, a preparar, com a segurança da sua identidade, o seu lugar num mundo que é diferente.”
Lendo as referidas “Bases”, um “leigo com algumas luzes destas matérias” fica com a sensação de que “está lá tudo” (e o que não está na letra está no espírito...): os objectivos permanentes, as ameaças (as que se podem nomear...), as principais alianças e áreas de interesse estratégico, os objectivos em termos de capacidades militares, etc. Contudo, numa altura em que sobe (novamente) a tensão entre chefias militares e governo, uma palavra surgiu-me quase inexplicavelmente quando lia as “Bases” e a sua panóplia de ambições: dinheiro. “Dinheiro” sem qualquer duplo sentido ou ironia mas sim no seu significado estrito, dotação orçamental para fazer face às ambições expressas. É aqui que, mais uma vez, parece estar o cerne da questão. Na minha perspectiva, “o limbo orçamental” que envolve as Forças Armadas (FA) dificilmente poderá ser relaxado. Mesmo com a generalização de uma certa “onda securitária”, as reticências são, atrever‑me‑ia, estruturais. De facto, na minha perspectiva, independentemente das vontades políticas e das ideologias no poder, muito dificilmente se alcançará um crescimento acentuado/sustentado das despesas militares. Não sou nem pacifista nem realista puro mas parece-me que o rigor e a eficiência preconizados no documento (outra coisa não seria de esperar) serão inevitavelmente acompanhados, no máximo, por um reduzido crescimento, em percentagem do produto, das dotações orçamentais dedicadas às FA. E, tendo em conta um contexto de afirmação do indivíduo em que os tradicionais intermediários (família, Estado, igreja,...) fraquejam e em que se assiste à “divinização do humano” (a que se refere Luc Ferry), mesmo esse reduzido crescimento tenderá a ser justificado, sobretudo, pela participação em operações multinacionais de paz. De resto, o Estado, actor central da Defesa e da “gestão da violência armada” está em profunda transformação (tal como, aliás, a nação), atravessado por forças poderosíssimas ligadas não só à dispersão de poder mas também a fenómenos demográficos e etnológicos como o envelhecimento, a imigração, o multiculturalismo ou a afirmação regional. O conceito de fronteira desvaneceu-se, encontrando-se o Estado (tradicional garante da segurança dos seus cidadãos) cada vez mais encurralado entre a força do macroregionalismo (a União Europeia, por exemplo) e as pulsões regionais no seu interior (veja-se o que acontece em Espanha, por exemplo). Assim, utilizando as palavras das “Bases”, o “lugar [de Portugal] num mundo que é diferente” será, acima de tudo, o seu lugar naquilo que eu chamaria o “jogo das novas fronteiras da participação”, complementando formas de actuação relativamente fáceis e passivas ligadas ao aproveitar de oportunidades (fundos comunitários, por exemplo) com actuações muito mais exigentes e inovadoras nos fóruns económicos, científicos, políticos e militares inter e transnacionais. Afirmar Portugal é também, parece-me, ter capacidade (e vontade) para “pensar o mundo” e para participar na acção sobre ele.
Lendo as referidas “Bases”, um “leigo com algumas luzes destas matérias” fica com a sensação de que “está lá tudo” (e o que não está na letra está no espírito...): os objectivos permanentes, as ameaças (as que se podem nomear...), as principais alianças e áreas de interesse estratégico, os objectivos em termos de capacidades militares, etc. Contudo, numa altura em que sobe (novamente) a tensão entre chefias militares e governo, uma palavra surgiu-me quase inexplicavelmente quando lia as “Bases” e a sua panóplia de ambições: dinheiro. “Dinheiro” sem qualquer duplo sentido ou ironia mas sim no seu significado estrito, dotação orçamental para fazer face às ambições expressas. É aqui que, mais uma vez, parece estar o cerne da questão. Na minha perspectiva, “o limbo orçamental” que envolve as Forças Armadas (FA) dificilmente poderá ser relaxado. Mesmo com a generalização de uma certa “onda securitária”, as reticências são, atrever‑me‑ia, estruturais. De facto, na minha perspectiva, independentemente das vontades políticas e das ideologias no poder, muito dificilmente se alcançará um crescimento acentuado/sustentado das despesas militares. Não sou nem pacifista nem realista puro mas parece-me que o rigor e a eficiência preconizados no documento (outra coisa não seria de esperar) serão inevitavelmente acompanhados, no máximo, por um reduzido crescimento, em percentagem do produto, das dotações orçamentais dedicadas às FA. E, tendo em conta um contexto de afirmação do indivíduo em que os tradicionais intermediários (família, Estado, igreja,...) fraquejam e em que se assiste à “divinização do humano” (a que se refere Luc Ferry), mesmo esse reduzido crescimento tenderá a ser justificado, sobretudo, pela participação em operações multinacionais de paz. De resto, o Estado, actor central da Defesa e da “gestão da violência armada” está em profunda transformação (tal como, aliás, a nação), atravessado por forças poderosíssimas ligadas não só à dispersão de poder mas também a fenómenos demográficos e etnológicos como o envelhecimento, a imigração, o multiculturalismo ou a afirmação regional. O conceito de fronteira desvaneceu-se, encontrando-se o Estado (tradicional garante da segurança dos seus cidadãos) cada vez mais encurralado entre a força do macroregionalismo (a União Europeia, por exemplo) e as pulsões regionais no seu interior (veja-se o que acontece em Espanha, por exemplo). Assim, utilizando as palavras das “Bases”, o “lugar [de Portugal] num mundo que é diferente” será, acima de tudo, o seu lugar naquilo que eu chamaria o “jogo das novas fronteiras da participação”, complementando formas de actuação relativamente fáceis e passivas ligadas ao aproveitar de oportunidades (fundos comunitários, por exemplo) com actuações muito mais exigentes e inovadoras nos fóruns económicos, científicos, políticos e militares inter e transnacionais. Afirmar Portugal é também, parece-me, ter capacidade (e vontade) para “pensar o mundo” e para participar na acção sobre ele.
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