sexta-feira, outubro 31, 2014
Um segundo depois, uma fotografia de uma ferida
(1) Gosto de imaginar que todas as fotografias do mundo (cujo objeto são pessoas que sabem que estão a ser fotografadas) sofriam um atraso de 1 segundo. Ao serem apanhadas 1 segundo depois do previsto, o mais provável é a pessoa fotografada estar a dar um passo em frente (em direção ao fotógrafo). O registo deste passo (em vez do registo da encenação) poderia fazer toda a diferença: tornar a fotografia dinâmica, genuína, real. Dar-lhe um futuro.
(2) Estava com a minha filha mais velha (que mesmo assim é muito nova) a ver fotografias da família. Eu perguntava-lhe “onde está a mamã?”, “onde está a vovó?”, “onde está a mana?”, etc. Quando apareceu uma fotografia minha e lhe perguntei “onde está o papá?”, ela parou por um momento, poisou a fotografia e apontou para mim (para mim mesmo, não para a minha representação fotográfica). Por momentos, os meus 40 e poucos anos de aculturação quase me levavam a corrigi-la.
(3) Uma ferida serve, pelo menos, para duas coisas: como ponto de partida para a reconstrução de memórias; como testemunha da extraordinária capacidade de regeneração do corpo (extraordinária mas limitada).
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sexta-feira, outubro 03, 2014
Persistência e mutabilidade
No quarto e quinto séculos a.C. os debates filosóficos aumentaram de intensidade, aprofundando-se a reflexão metafísica e a procura da autoconsciência. Heráclito, Parménides, Sócrates, Platão e Aristóteles estão entre aqueles que protagonizaram algumas das primeiras discussões entre estruturas filosóficas antagónicas, encetando diálogos que, em alguns aspectos, podem ser transportados até à era atual. O pensamento de Heráclito e Parménides, por exemplo, permite-nos imaginar um diálogo bastante vivo. Heráclito (aprox. 535 a.C. - 475 a.C.) via o mundo como um conjunto de sistemas de fluxos, mutáveis e emergentes. A incerteza e as diferentes possibilidades faziam parte da sua visão do mundo. Por outro lado, Parménides (530 a.C. — 460 a.C.) defendeu o caráter permanente, imutável, da realidade, muito inspirado pelo alfabeto que favoreceu o domínio da percepção visual, valorizando o universal, o abstrato e o estático, em detrimento do fluido e o particular. Heráclito preocupou-se sobretudo com o processo, orientado pela indeterminação, fluxo, interpenetração, em mudança incessante. Em contraste, quadros teóricos positivistas como os de Karl Marx e Adam Smith (e Parménides) acreditavam na presença de forças persistentes (e invisíveis) subjacentes e definidoras do mundo real. Parménides e a permanência, as causas profundas que marcaram o passado e marcarão o futuro. Heráclito e a incerteza emergente, a impossibilidade da previsão, a certeza de que, por muita análise que se faça, seremos sempre surpreendidos.
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