sexta-feira, outubro 31, 2014

Um segundo depois, uma fotografia de uma ferida

(1) Gosto de imaginar que todas as fotografias do mundo (cujo objeto são pessoas que sabem que estão a ser fotografadas) sofriam um atraso de 1 segundo. Ao serem apanhadas 1 segundo depois do previsto, o mais provável é a pessoa fotografada estar a dar um passo em frente (em direção ao fotógrafo). O registo deste passo (em vez do registo da encenação) poderia fazer toda a diferença: tornar a fotografia dinâmica, genuína, real. Dar-lhe um futuro. (2) Estava com a minha filha mais velha (que mesmo assim é muito nova) a ver fotografias da família. Eu perguntava-lhe “onde está a mamã?”, “onde está a vovó?”, “onde está a mana?”, etc. Quando apareceu uma fotografia minha e lhe perguntei “onde está o papá?”, ela parou por um momento, poisou a fotografia e apontou para mim (para mim mesmo, não para a minha representação fotográfica). Por momentos, os meus 40 e poucos anos de aculturação quase me levavam a corrigi-la. (3) Uma ferida serve, pelo menos, para duas coisas: como ponto de partida para a reconstrução de memórias; como testemunha da extraordinária capacidade de regeneração do corpo (extraordinária mas limitada).

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