sexta-feira, novembro 29, 2002

Lula está muito perto

O Brasil encontra-se, nestes meses derradeiros de 2002, num período de transição entre a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e a de Lula.
Depois de 8 anos de liderança de FHC - caracterizada, muito sucintamente, por uma maior abertura do Brasil ao exterior (clara, por exemplo, no crescimento dos fluxos de Investimento Directo Estrangeiro (IDE)), um conjunto alargado de processos de privatização de sectores infra-estruturais (como a energia e a água), acordos vários com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (indo Lula ainda beneficiar de uma parte do último empréstimo negociado por FHC), uma subida significativa da taxa de desemprego e uma descida da de analfabetismo - Lula, um antigo operário, parece estar pronto para o grande momento da sua conturbada vida. É uma espécie de “grande teste”, estando todos os olhos (e não só os dos brasileiros) direccionados para ele, constituindo Lula e os resultados da sua política um claro crivo empírico (que tem o Brasil, “eterno sonho adiado”, como palco ideal) de um conjunto de novas ideias/reinterpretações de uma esquerda de fusão, do “povo de Porto Alegre”, céptico relativamente à globalização cultural e capitalista (embora dela, de alguma forma, fazendo parte) e certo da “violência do capital” (e sobretudo de um eventual “livre arbítrio social do dinheiro”). A tarefa, é quase desnecessário dizê-lo, será dificílima, sendo certa uma avalanche de “provas” sucessivas (a forma da reforma agrária, desculpem o “quase pleonasmo”, constituindo-se como uma das primeiras).
É que Lula (e, especialmente, o que ele significa no imaginário das pessoas), claramente mais “amadurecido” – “vem para revolucionar e não para fazer a revolução” - após 4 eleições presidenciais (algumas das quais – como a que o opôs a Collor de Mello - perdeu de forma bastante injusta, diga-se), paradoxalmente, pode falhar quer faça o que de mais “radical” prometeu quer não o faça. E ele, olhando para algumas das pessoas (nada “revolucionárias”) que tem vindo a escolher para o acompanhar, parece saber bem o que o espera. Os equilíbrios vão ser muito instáveis e esta estranha quase unanimidade à volta da sua figura pode rapidamente tornar-se em extensa hostilidade e desilusão. É que as grandes paixões que sonham mudar o mundo e para aí apontam (e de que as pessoas tanto precisam), normalmente, como neste caso, personalizadas em alguém - um ideal corporizado -, rapidamente se podem tornar em repulsa quase orgânica, ou mesmo numa aproximação ao ódio. De facto, só nos pode trair quem de nós está perto. E Lula está muito perto, talvez demasiado muito perto...

sexta-feira, novembro 22, 2002

Chipre


Já por várias vezes aproveitei esta coluna para falar da situação de uma ilha “perdida” no Mediterrâneo que, por vicissitudes da política e da história, anda cada vez mais nas “bocas do mundo”: Chipre.
Dividida entre comunidades grega e turca desde 1974, ano da ocupação turca do Norte da ilha (onde foi criada a República Turca do Norte de Chipre – apenas reconhecida por Ancara), Chipre tem constituído ao longo dos tempos um incomodativo e persistente “grão de areia” na engrenagem europeia. Na primeira linha do alargamento da União Europeia (UE) a Leste (que deverá ter lugar em meados de 2004), parece ter chegado a “hora da verdade”, se me é permitida a expressão, não só para cipriotas gregos e turcos, como também para as relações entre a Grécia e a Turquia e para a percepção da capacidade de influência da UE como espaço de atractividade (capaz até de proporcionar soluções políticas pacíficas e estáveis entre gregos e turcos).
A Organização das Nações Unidas (ONU), fortalecida pela relativa “cautela” norte‑americana no Iraque (uma espécie de unilateralismo soft), possui igualmente uma importante palavra a dizer em Chipre (até porque são suas as forças que desde há muito separam as duas partes desavindas), tendo o seu Secretário-Geral, Kofi Annan, avançado com uma possível solução do “tipo Suíça”, com a transformação de Chipre (após referendos a Norte e a Sul) num Estado federal (com uma Política Externa única) composto por dois cantões com Constituições próprias.
Mas não é apenas a Suíça que serve de modelo. Por exemplo, os acordos de cooperação entre flamengos e valões que permitem a optimização da coordenação das diferentes políticas na Bélgica são um outro tipo de instrumento que a ONU diz ser de grande utilidade para o futuro de um Chipre federal.
A ONU aproveita também, neste momento de aperto em que o “relógio” da UE não pára relativamente a Chipre, para incluir no seu modelo múltiplas formas de imbricação entre comunidades, avançando com as propostas de um Conselho Presidencial composto por 10 membros em que a Presidência e a Vice-presidência seriam rotativas entre comunidades, de imposição dos Ministros para os Assuntos Europeus e dos Negócios Estrangeiros serem de cantões diferentes e, mesmo, de uma fórmula provisória (3 anos) de co‑presidência entre os líderes das duas comunidades. E esta espécie de “equilibrismo no arame” da ONU continua no sistema judicial, na criação de uma Comissão de Reconciliação (à la África do Sul), na redução das tropas gregas e turcas estacionadas na ilha, etc.
Encontramos assim, no Mediterrâneo Oriental, uma pequena ilha dividida e cheia de militares que “quer ser” a Suíça, tentando ir cooperando como os belgas e controlando ódios antigos como a República da África do Sul. Isto tudo, claro está, ao mesmo tempo que entra para a UE. E pensávamos nós, pequeno país na ponta Ocidental da Europa, que a nossa vida ia ser complicada nos próximos tempos...

sexta-feira, novembro 15, 2002

Debate sobre o futuro dos egoísmos europeus

Não deixa de ser curioso que aquilo a que normalmente se chama “Debate sobre o futuro da Europa” (e que engloba inúmeras tomadas de posição de líderes e entidades europeias) tem sido (e continuará seguramente a ser até à Cimeira de Berlim de 2004) sobretudo um debate sobre o futuro enquadramento institucional da União Europeia (UE). Este facto, compreensível dada a necessidade de se definir claramente a nova estrutura em que, com o alargamento no horizonte próximo, se irão mover os principais actores da “cena” europeia, sugere, no entanto, a existência de um perigo real de desvio do foco para questões que embora sejam indubitavelmente essenciais, não deixam se ser fundamentalmente técnicas, deixando‑se para “mais tarde” o debate substancial (e bem mais difícil) sobre as grandes questões definidoras da UE como projecto (exs.: Justiça e Assuntos Internos (JAI), orçamento comunitário, Política Externa e de Segurança Comum (PESC), Defesa,...).
A preocupação com a sensibilidade nacional à forma do “regimento europeu” e o “peso” atribuído à respectiva discussão (vários analistas referiram, por exemplo, que a Cimeira de Laeken apenas terá marcado o início de muitos anos de análise e discussão destas matérias) dificilmente poderá deixar de ser um sinal da permanência (ou mesmo do agudizar) dos interesses divergentes dos Estados relativamente ao processo de integração na Europa, esteja esse interesse virado para a intergovernamentalidade, esteja ele inclinado para o modelo federal (o que, mais uma vez, não deixa de ser curioso). A este respeito, são também elucidativas as palavras de Seixas da Costa, ex‑Secretário de Estado dos Assuntos Europeus e actual embaixador junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que, em entrevista, sublinhou a importância de Portugal apoiar a manutenção/reforço dos poderes da Comissão Europeia, justificando esta opção como uma consequência indirecta das posições cépticas dos “grandes” Estados‑membros (EM’s) da UE face à referida Comissão. É, no fundo, a ideia de que o melhor modelo para uma certa ideia de Europa é, necessariamente, o modelo teórico que garante e potencia a defesa dos interesses de todos os EM’s. É a ideia de que, à boa maneira da “mão invisível” de Adam Smith, a persecução dos interesses egoístas das entidades individuais (neste caso, os EM’s da UE) continuará a contribuir para o “bem abstracto” do conjunto (neste caso, a UE). O problema é se a natureza do processo de integração europeia evoluir para as cercanias do conceito de bem público, não “regulável” por esta amálgama de egoísmos estatais e correndo o risco de deixar de por ela ser “produzido” e colocado à disposição dos cidadãos europeus.

sexta-feira, novembro 08, 2002

Um campo de golfe acolá

O processo de abordagem específico da prospectiva estratégica, ramo do conhecimento cada vez mais relevante nos tempos conturbados (económica e geopoliticamente) que correm, inicia-se regra geral com uma inquietação, uma “irreverência intelectual”, um “e se...”. E se “x” acontecer, estaremos preparados? E se a realidade económica se aproximar do “cenário y”, como nos (“nós”, empresa, país, região, cidade, indivíduo, etc.) organizaremos? O que podemos fazer, quais são as acções mais adequadas para influir no “cenário z”? Como o podemos transformar em “w”, mais favorável para a nossa organização? Mas constituirá o “cenário w” uma expectativa coerente e plausível?
Nesta forma de olhar o mundo e as relações entre os múltiplos actores em liça esta espécie de jogo do “e se...” é, de facto, uma constante. Breves exemplos: e se o Reino Unido aderir à União Económica e Monetária (UEM), o que se altera? E se nunca o vier a fazer? E se a UEM, devido a fortes divergências entre os seus membros, colapsar? E se a França se aproximar dos EUA, assistindo-se a uma dinâmica transatlântica de fluxos de capitais com reflexos, por exemplo, ao nível da indústria de defesa? E se a França, pelo contrário, priorizar a concorrência directa com os EUA ao nível da Defesa e da Política Externa? E se os EUA e a Rússia forem os novos aliados do século XXI? E se não? E se as tensões aumentarem (no Cáucaso e na Ásia Central, por exemplo)? E se a Rússia e os principais Estados‑Membros da União Europeia (UE) se aproximarem entre si e se afastarem dos EUA? E se a Turquia aderir à UE e também fizer parte deste grupo? E se nunca aderir? E se a Turquia e a Grécia entrarem em conflito devido a Chipre? E se a Turquia anexar a parte Norte da ilha? E se o Sul se integrar na Grécia? E se Chipre já estiver, quando estes acontecimentos tiverem lugar, na UE? E se não? E se alemães e franceses se afastarem (por causa da Política Agrícola Comum, por exemplo), como evoluirá a integração europeia? E se, pelo contrário, o eixo franco‑alemão ganhar novo ânimo? E se Portugal apostar numa aliança estratégica com o Brasil? E se for com a Espanha? E com a França? E a Holanda e o Benelux serão atraentes? O que temos que transformar para nos tornarmos seus parceiros nas questões europeias? E se a Espanha entrar em crise (por um falhanço da “aventura latino‑americana” e/ou uma crise com Marrocos devido a Ceuta e Melilla e/ou um exacerbar das tensões autonómicas, por exemplo)? Quais são as vantagens? Existirá alguma? E os inconvenientes? E os riscos? E com que Espanha podemos contar? E com que França? E com que Portugal? Virado para o turismo? Para o sector automóvel? Para os sectores tradicionais? Quais são as consequências das diferentes possibilidades? Quais as necessidades para que as possamos influenciar? Que Investimento Directo Estrangeiro queremos atrair? Qualquer um? Mais um construtor automóvel de grandes dimensões? De que tipo de automóvel? E serviços informáticos? É possível? Como? Em que áreas devemos focalizar os nossos esforços de Investigação e Desenvolvimento? Que parceiros devemos procurar? Vamos a “Detroit” (automóvel)? A “Milão” (moda/design)? A Hollywood (entretenimento)? A Silicon Valley (software e tecnologias da informação)? A Cambridge (biotecnologia)? Valerá a pena? Será necessário o esforço? Ou o nosso sol é suficiente? Mais um casino aqui. Um estádio de futebol ali. Uma praia além. Um campo de golfe acolá...

sexta-feira, novembro 01, 2002

11/9


Ao deitar um olhar rápido para o conjunto de textos publicado nesta coluna ao longo deste ano, noto com curiosidade a quase inexistência de referências directas à série de acontecimentos simbolizados mediaticamente pelos ataques às torres gémeas de Nova Iorque no dia 11 de Setembro de 2001 (11/9). Abordá-los-ei aqui, muito sucintamente, com o foco em algumas das alterações que a citada série de eventos trouxe para o sistema mundial.
Em abstracto, se olharmos de longe (sentados confortavelmente no planeta Marte, por exemplo), podemos afirmar que pouco ou nada terá mudado. O sistema continua unipolar (ou unimultipolar, para satisfazer os mais rigorosos destas coisas da Estratégia), com uma potência hegemónica “encarregue”, dada a sua supremacia económica e militar, de “gerir” um mundo conturbado, o que lhe traz, na minha perspectiva, grandes vantagens e grandes inconvenientes. Grandes vantagens basicamente pelo conjunto de regras que tem capacidade para impor (e.g. a noção de ataque preventivo) e/ou não se sujeitar (e.g. o Tratado Anti‑Mísseis Balísticos). Grandes inconvenientes ligados não só ao desgaste político, militar e económico que o actual sistema comporta para os EUA (é obviamente a este actor que me refiro) mas sobretudo à sua sujeição àquilo que eu chamaria “crítica por inacção” e à impossibilidade (ou, pelo menos, grande dificuldade) de se situar, mesmo que ocasionalmente, na posição de free‑rider estratégico, simultaneamente apanágio e estigma da hegemonia.
Se aterrarmos na Terra, contudo, não parece ser difícil intuir que o sistema internacional parece ter mudado no espaço de pouco mais de um ano, quanto mais não seja porque mudaram os principais actores (os EUA estão diferentes, a Rússia está diferente, a Índia está diferente, etc., etc.) e, sincopadamente, mudou a percepção que a Humanidade faz do mundo em que vive, a “nossa” perplexidade perante o sistema.
A Europa está mais só (e, espera-se, mais responsável), longe dos “velhos tempos” da Guerra Fria em que os EUA a geriam e acarinhavam como um bebé frágil e precioso. Hoje, os EUA (os tais “senhores” poderosos com muito trabalho para fazer), têm outras paragens com que se preocupar, sendo que os equilíbrios geoestratégicos são cada vez mais definidos bem longe do “velho continente” (na Ásia, por exemplo).
Surgiu a noção de terrorismo global, simbolizado pela Al Qaeda, estranha, maniqueísta, etérea e, eu sei que soa estranho, mediática (parece que houve uma lista de estudantes em Viseu que usou uma fotografia do Sr. bin Laden como veículo promocional) organização tentacular que, utilizando uma certa interpretação do Islão como arma e fonte de legitimidade, se apresenta sobretudo como movimento político radical e unificador.
A Rússia aproximou-se dos EUA formando-se uma complementaridade estratégica entre estes dois actores baseada sobretudo nos hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) mas também, por exemplo, no crescente investimento privado norte‑americano na Rússia, na aproximação Rússia-NATO, na “contenção” da China e no combate ao fundamentalismo islâmico e à já citada rede Al Qaeda.
Estes constituem apenas alguns exemplos de transformações estratégicas que se acentuaram a partir do 11/9 e, se é verdade, como dizia Camões, que “todo o mundo é composto de mudança”, parece que desta vez, ao contrário do que dizia a canção, é esse mesmo mundo que nos anda a trocar as voltas...