sexta-feira, novembro 02, 2007

Seis olhares sobre o mundo

É em tempo de novo tratado na União Europeia (o de Lisboa) e de grandes cimeiras, que apetece olhar um bocadinho para fora, para o que se passa fora dos ambientes cristalizados do Pavilhão Atlântico (onde tiveram lugar as últimas negociações para acertar os termos do futuro Tratado de Lisboa) ou do Convento de Mafra (onde Puttin, Sócrates, Barroso, Solana e outros se encontraram).

1) A Turquia, eterno candidato à entrada na UE, enfrenta um enorme dilema. Entrar ou não em território iraquiano para combater o PKK (força militar que luta por um Curdistão independente) correndo o risco de destabilizar ainda mais o frágil (des)equilíbrio iraquiano. E os vizinhos turcos também enfrentam um grande dilema: apoiar ou criticar (ou olhar para o lado) a agressividade turca, sabendo eles que um recrudescer da luta por um Curdistão independente está longe de afectar apenas a Turquia. Esse Curdistão potencial incluiria parte da Turquia, parte do Iraque, parte da Síria e parte do Irão. Compreensivelmente, a presidência portuguesa da UE espera que este problema, a “arrebentar” (e outros, como o Kosovo), o faça lá para 2008.

2) O “ex-futuro Presidente dos EUA” Al Gore ganhou o Nobel da Paz, colocando as alterações climáticas ainda mais no centro da discussão global. Por muito que se diga (e é verdade) que uma nova revolução produtiva “limpa” (novas fontes energéticas; novas formas de mobilidade; novos materiais, etc.) comporta renovadas oportunidades de crescimento económico, não deixa também de ser verdade que a “baleia” chinesa consome hidrocarbonetos em excesso e polui em excesso. E quando estas jovens baleias se agitam, principalmente a chinesa mas também a indiana, os mercados agitam-se (por exemplo o das matérias‑primas, mas não só). E ambas estão em processo de crescimento muito acelerado, estão a urbanizar, estão a motorizar, estão a industrializar. São muitos milhões de pessoas envolvidas nestes processos, os quais são a base das emissões de CO2 para a atmosfera e a base da mão humana no que concerne às alterações climáticas. Neste âmbito a UE parece liderar o esforço global. Só falta, agora, o mais difícil: explicar à jovem e impulsiva “baleia” chinesa a necessidade de controlar as emissões de CO2 e os consumos de hidrocarbonetos e aos EUA a necessidade de metas obrigatórias individuais no que toca às emissões.

3) O nuclear, muitos anos depois das primeiras bombas e da contagem de ogivas entre blocos característica da Guerra Fria, continua a agitar a cena internacional. Depois da falsa ameaça iraquiana e do adormecimento da Coreia do Norte, o Irão está agora no centro da agenda e a Síria é encarada cada vez mais como suspeita de estar a desenvolver projectos nucleares em segredo. A suspeita sobre a Síria avolumou-se depois do segredo cúmplice após a ‘Operação Orquídea’ realizada por caças israelitas em território sírio. O que é que estes caças atingiram (ou queriam atingir) é que ninguém quis revelar, fazendo lembrar raides semelhantes realizados pelos israelitas contra instalações eventualmente ligadas com projectos nucleares no Iraque de Saddam Hussein.

4) Finalmente, os mercados financeiros estão desconfiados, inquietos. As grandes vantagens da sua integração e globalização também mostram o reverso da medalha quando o risco se espalha, sim, mas também perde adesão à realidade. A sensação de que todo o risco podia ser diluído no mercado desvaneceu-se a partir do momento em que, simplesmente, o mercado deixou de o comprar. Foi assim que um problema localizado de insolvência de clientes de crédito hipotecário de alto risco nos EUA se globalizou rapidamente, fazendo algumas das suas principais vítimas na Europa, como foi o caso do BNP Paribas (falência de fundos de investimento) e do Northern Rock britânico (numa decisão extrema, o Banco Central inglês teve que abrir uma grande linha de crédito destinada a este Banco e garantir as poupanças dos clientes na tentativa de evitar uma crise ainda maior). Isto apesar de uma reacção energética quer da Reserva Federal dos EUA quer do Banco Central Europeu.

5) A boa notícia é que este “susto” evitou mais uma subida das taxas de juro na zona euro. Resta saber se se trata do fim do ciclo de subidas ou se, o que me parece mais provável, é apenas uma interrupção temporária desta tendência. Neste capítulo, veremos ainda o resultado de uma das muitas discussões lançadas pelo imparável presidente francês Sarkozy: a da independência do BCE, encarregue de limitar pressões inflacionistas e não de gerir ciclos de crescimento/recessão económica na zona euro. Além disso o euro nunca esteve tão forte face ao dólar o que, já se sabe, é bom para quem compra ao exterior mas prejudica quem tenta vender. É, neste caso, duplamente bom para as grandes multinacionais americanas que vendem em dólares e consolidam os seus resultados globais em dólares. Quem, a partir de Portugal, tentar competir globalmente enfrenta um triplo constrangimento macroeconómico: taxas de juro a crescer, euro forte, fiscalidade elevada.

6) Resta saber se as águas tradicionalmente mais cálidas do mercado interno (imobiliário/construção, sector financeiro, distribuição, sectores infra‑estruturais, telecomunicações, etc.) continuarão a ser um bom refúgio para os capitais portugueses tendo em conta uma procura potencialmente mais acanhada, crédito mais restrito e, claro, cada vez menos barreiras à entrada. Neste contexto, uma particular atenção à sustentabilidade dos preços do imobiliário, refúgio para o investimento e a poupança na Ibéria, é crucial para o futuro próximo da economia portuguesa. E os sinais vindos do nosso vizinho do lado são preocupantes, prevendo-se uma desaceleração do crescimento económico espanhol associada a uma desaceleração do imobiliário (isto em contexto pré-eleitoral). Nos EUA, só para dar um exemplo, a crise no sector do imobiliário é já uma realidade. Curiosamente, na minha perspectiva, o futuro do país até pode beneficiar, a médio/longo prazo, de um pequeno crash imobiliário/construção se esta for a única forma de agitar carteiras e consciências, tornando mais competitivos investimentos de maior valor acrescentado, mais exigentes ao nível do conhecimento e da inovação e transaccionáveis internacionalmente. Enquanto as taxas de retorno do imobiliário/construção/turismo forem muito elevadas, o que significa capital de risco em Portugal?

sexta-feira, setembro 07, 2007

Tempo curto – uma reflexão

Vivemos num ponto infinitamente pequeno da história do ser humano na Terra; a história do ser humano na Terra é um ponto infinitamente pequeno da história da própria Terra; e a história desta última é um ponto infinitamente pequeno da história do Universo.
A nossa existência é infinitamente pequena mas isso todos sabemos, eventualmente sem pensarmos muito nisso. Essa pequenez parece-me ser, no entanto, mais do que uma óbvia limitação orgânica, um poderoso incentivo à procura de liberdade, acabando por ser indissociável dela, pois sem essa procura essencial ela não existiria. Neste sentido, a nossa existência curta é a outra face da nossa liberdade individual. A liberdade de viver um momento curto que é a nossa vida e de o tornar significativo (para cada um de nós); a liberdade para fazer opções, para querer e para não querer, para questionar as ideias feitas e para perguntar “porquê?”.
Se vivêssemos para sempre não necessitávamos tanto, tão urgentemente de ser livres. De experimentar, de testar, de escolher. Ao ser infinita a vida perderia o seu valor infinito. Ou seja, se vivêssemos para sempre não necessitávamos tanto de viver.
É precisamente pelo nosso tempo ser tão curto que a liberdade é tão importante. A democracia e os direitos humanos, por exemplo, são sinais dessa luta humana essencial. Ideias e práticas que relativizaram (e relativizam) o presente (e os seus valores; por exemplo a liberdade individual) e que marcaram profundamente o século XX (e alguns dos seus maiores conflitos), prometendo um “futuro radioso”, um “Homem diferente”, renascido, usaram esse instrumento tão poderoso que é o futuro não como veículo de liberdade e de possibilidade no presente mas como forma de escravizar esse mesmo presente, de limitar o ser humano nas suas opções, na sua curiosidade, na sua ironia e, claro, na sua liberdade.
Tenho a noção que a liberdade exige consciência e capacidade. Consciência da possibilidade de o ser e capacidade (real) para o ser. Assumo, neste texto, que somos conscientes e capazes. Nesse sentido, a função central do Estado seria lutar sempre pela possibilidade (material, por exemplo) da liberdade e contribuir para a consciência individual da mesma por parte dos cidadãos.

segunda-feira, julho 02, 2007

Fundos Comunitários: sim, mas...


Nada terá marcado mais Portugal nos últimos 20 anos que o processo de integração europeia. E, no âmbito desse processo, os Fundos Comunitários, conjuntamente com o Euro, apresentam-se, para o bem e para o mal, como os processos com maior impacto na vida dos portugueses. Só um erimita bem escondido no fundo de uma caverna não terá já passado por uma estrada co-financiada pelo FEDER, frequentado um curso co-financiado pelo FSE ou usufruido de uma qualquer estrutura apoiada pelos Fundos.


Mas porque é que existe Política de Coesão da União Europeia? Porque é que um conjunto de Estados mais ricos do que nós mas com problemas como todos os outros, decidem de forma recorrente transferir recursos para o orçamento comunitário que, depois, serve para alimentar os menos ricos, principalmente se essa menor riqueza, casmurra, tende a prolongar-se no tempo, como no caso português?
A ambição da Política de Coesão da UE é muito simples: reduzir as diferenças de rendimento entre países e regiões da UE.


Antes de mais, a Coesão e os meios financeiros a ela alocados têm uma justificação política, são um objectivo da UE, constituem uma opção política europeia presente nos Tratados, o direito primário da União. Por exemplo: “A União atribui-se os seguintes objectivos: — a promoção do progresso económico e social e de um elevado nível de emprego e a realização de um desenvolvimento equilibrado e sustentável(...), o reforço da coesão económica e social e o estabelecimento de uma união económica e monetária (...). (Tratado UE, artigo 2º, alínea a).


Mas, se a justificação política é central para a Coesão e para a sua Política central, a Política Regional, há um conjunto de argumentos económicos que têm sido utilizados para a justificar. A maioria destes argumentos está ligada à integração de mercados, processo com grande força e impacto que se confunde com a própria história da construção europeia. Conhecidos os seus impactos positivos ao nível da eficiência na alocação de recursos, este processo não deixa de comportar significativos custos de reestruturação, sendo reconhecido que os países mais ricos, fruto de situações de competição monopolística nos mercados integrados e da sua maior capacidade de inovação baseada na diferenciação de produtos, podem retirar maiores benefícios da referida integração. Esta ideia constitui um argumento económico para a existência de uma Política Regional que ajude os países e as regiões mais pobres a recuperar das suas dificuldades estruturais de partida.

A imperfeita mobilidade dos factores de produção (ex: conhecimento/tecnologia) que dificulta a convergência, comporta um bónus de crescimento para as regiões ricas a partir de avanços tecnológicos baseados no capital humano. Esta ideia é reforçada pelas novas teorias da Economia Evolucionária segundo as quais o conhecimento e a inovação tendem a concentrar‑se em determinadas áreas, essencialmente em resultado da importância do conhecimento tácito para a inovação que necessita de contactos entre pessoas e organizações, redes, experiência acumulada, necessitando de um processo de learning-by-doing para se reproduzir (ao contrário do conhecimento codificado, facilmente apreendido, transmitido e reproduzido).
Adicionalmente, a União Económica e Monetária (UEM) e o Euro, associados à existência de diferenças de especialização entre países e regiões e aos diferentes níveis de rendimento a elas associados, levam a uma maior susceptibilidade a choques assimétricos na UE (no contexto de uma Política Monetária única), comportando uma necessidade acrescida de convergência das estruturas produtivas e funcionando, assim, como reforço dos argumentos a favor da Política de Coesão.


Percebe-se porque existe, então, Política de Coesão e Fundos Comunitários. Percebe-se a sua importância central (basta olhar à nossa volta) no processo assinalável de transformação de Portugal.
Mas convém não esquecer que os mesmos fundos estruturais, quase à semelhança do ouro do Brasil, não comportam apenas incentivos positivos. Entre os incentivos negativos potenciais e actuais podemos identificar: (1) um crescimento fundamentalmente baseado em injecções maciças de fundos e não na dinâmica própria da economia e das suas actividades; (2) a pressão para a valorização da taxa de câmbio real em consequência dos fluxos financeiros do exterior, dificultando as exportações; (3) a tendência para uma economia “politizada” (fundos disponíveis para “utilização” política) e a concentração da energia política e económica na luta pela distribuição de fundos abundantes (e não na criação de riqueza, no assumir de riscos, etc.); (4) uma menor ligação entre fiscalidade e investimento público (maior “distanciamento democrático”); (5) mais foco na execução e menos na capacidade reprodutiva dos investimentos.
Cuidado.

sexta-feira, maio 18, 2007

Uma Caixa de Ferramentas da Prospectiva Estratégica I


Tenho-me referido nos últimos artigos a um conjunto de autores que estruturam uma “história do futuro” no século XX, isto é, à forma como o futuro foi tratado no século XX como objecto de análise, de reflexão e de acção por diversas escolas da Prospectiva. Voltarei a essa viagem em próximos artigos mas, neste, decidi referir‑me sucintamente a um conjunto de ferramentas da Prospectiva Estratégica que estão à disposição de regiões, cidades, Estados, empresas, associações e outro tipo de organizações para melhor tomarem as suas decisões no presente, tendo em conta uma exploração sistemática, sistémica, criativa e útil do futuro. Neste artigo vou-me referir de forma muito breve a oito ferramentas.
1. Os sistemas de Environmental Scanning, cada vez mais em voga, por exemplo, ao nível da monitorização estratégica regional no Reino Unido, fornecem early warnings, avisos que prenunciam alterações importantes no contexto (mais próximo ou mais longínquo) da organização, e detectam weak signals, sinais ainda não completamente estruturados mas indicativos de mudanças disruptivas, alterações em tendências identificadas ou transformação de emergências (no sentido de algo que emerge e não no sentido de urgência) em tendências.
2. A Futures Wheel é uma ferramenta de análise das consequências potenciais de tendências ou acontecimentos num determinado foco. Utilizo a expressão inglesa original pois a tradução literal para português, “volante dos futuros”, não incute grande credibilidade a uma ferramenta muito útil que permite não só identificar, distinguir e agrupar consequências de 1ª, 2ª e 3ª ordem de tendências ou eventos, como também explorar opções de política decorrentes dessas consequências. De forma rápida um grupo consegue recolher informação muito variada, facilitando a criatividade. A linguagem subjacente à Futures Wheel permite desde logo uma primeira estruturação da informação (essencial para a construção e exploração colectiva de uma questão/problema).
3. O método Delphi consiste na utilização de painéis de peritos para uma melhor percepção das evoluções possíveis e prováveis (e das suas consequências) relativamente a um determinado foco. Amplamente utilizado nas questões tecnológicas (no Japão, EUA, Reino Unido, etc.) tem sido crescentemente utilizado em exercícios globais de Prospectiva, normalmente de âmbito nacional.
4. A Análise de Impactos Cruzados é uma abordagem analítica às probabilidades de um item (um acontecimento, por exemplo) num conjunto de probabilidades. Permite a percepção das influências cruzadas entre eventos probabilizados e o teste da coerência das probabilidades subjectivas atribuídas por peritos em painéis.
5. A Análise Estrutural permite relacionar exaustivamente os elementos constitutivos de um determinado sistema, fornecendo pistas para a identificação das variáveis‑chave desse sistema, isto é, as variáveis mais decisivas para a sua evolução futura.
6. A Análise da Estratégia dos Actores, partindo do estudo dos projectos e meios de acção dos Actores (organizações, indivíduos, etc. capazes de influenciar/serem influenciados pelo foco do trabalho de Prospectiva), permite a identificação das relações de força entre Actores, dos principais conflitos e alianças (actuais e potenciais), do apoio/oposição a determinadas evoluções das variáveis e configurações de Cenários, etc.. Trata-se de um instrumento de sistematização e auxílio da análise e melhor compreensão do “jogo” no qual estão envolvidos um determinado conjunto de Actores.
7. A Análise Morfológica parte da ideia de que um sistema pode ser decomposto em dimensões e componentes (por exemplo, demográficas, económicas, tecnológicas, societais, organizacionais), sendo que cada uma das componentes terá um conjunto de estados (configurações) possíveis. Uma combinatória de uma configuração de cada uma das componentes não é mais do que uma estrutura básica de um Cenário.
8. O Método dos Cenários da Escola Lógico-Intuitiva, herdeira de Herman Khan, da Shell e da Global Business Network utiliza um processo de identificação de um número limitado de incertezas cruciais (normalmente duas, muito incertas e com muito impacto no foco) como a base da construção de Cenários que servem, entre outros objectivos, como forma de tornar mais claro o mix de decisões estratégicas com maior benefício potencial tendo em conta as incertezas e os desafios colocados pelo ambiente externo ao foco do exercício.

Estas ferramentas são apenas um pequeno “menu de entradas”. São muitas mais as ferramentas utilizadas, combinadas e adaptadas nos processos de Prospectiva. Sobre cada uma delas está disponível uma vasta bibliografia mas, como em muitas outras áreas, também neste caso só se consegue aprender fazendo, aplicando, experimentando e, por vezes, errando.
São instrumentos para a mudança, ferramentas à disposição dos responsáveis regionais (mas também de outras organizações) para fazerem aquilo que cada vez mais define o seu futuro: serem capazes de mobilizar os actores (actuais e potenciais) em torno de um projecto de território, de incentivar e estruturar a criatividade, de construir uma visão integradora que reflicta as ambições dos stakeholders e os responsabilize pela sua implementação, de definir um foco estratégico para a entidade regional que funcione como um farol para a tomada de decisão pública e privada, de construir uma identidade aglutinadora de energias e que dê coerência à acção política.
Explorarei de forma mais aprofundada algumas destas ferramentas e das suas aplicações (com foco na Prospectiva Estratégica de base territorial) em próximos artigos.

sexta-feira, abril 13, 2007

A Evolução do Futuro no Século XX: a Escola da Shell [1]


A Shell é indissociável de qualquer descrição da forma como o Homem tentou, no século XX, gerir, pensar de forma inteligente e trabalhar sobre o futuro desconhecido. Esta multinacional é, literalmente, a casa‑mãe do Planeamento por Cenários, ferramenta de referência da Prospectiva, entretanto generalizada ao nível do Planeamento Estratégico não só ao nível das empresas como dos países, regiões, cidades, etc.. Entre outros, três nomes, em diferentes gerações, marcaram o processo de utilização dos Cenários na Shell, desenvolvendo de forma cumulativa o Scenario Thinking and Planning: Wack, Schwartz e van der Heijden.
Pierre Wack (na foto), considerado um génio (e um místico) é, provavelmente o grande responsável pelo sucesso e posterior generalização do Método dos Cenários, não só na Shell mas em grandes empresas nos EUA e na Europa. “O homem que viu o futuro”[2] foi Director do Departamento de Planeamento do Grupo Royal Dutch/Shell durante 10 anos caracterizados por uma grande turbulência (1971 – 1981), sendo autor de dois textos essenciais publicados em 1985 na Harvard Business Review: “Scenarios: uncharted waters ahead” e “Scenarios: shooting the rapids”. Estes textos descrevem de forma brilhante o processo que permitiu à Shell antecipar a formação do cartel do petróleo (OPEP) e o choque petrolífero associado. O sucesso da Shell no período foi flagrante: segundo van der Heijden, os seus concorrentes demoraram cerca de dois anos para reconhecer a própria crise de 1973 e mais cinco ou seis anos para diminuir a capacidade instalada.
Peter Schwartz e Kees van der Heijden foram sucessores de Wack na Direcção do Departamento de Planeamento por Cenários do Grupo Royal Dutch/Shell. Ampliaram o raio de acção da cenarização para além das questões energéticas e fundaram a Global Business Network (GBN), uma comunidade de excelência centrada no desenvolvimento, aprendizagem e aplicação do pensamento por Cenários a múltiplos objectos de análise constituindo-se, actualmente, como uma das mais importantes organizações na área do Planeamento por Cenários e oferecendo serviços de consultoria, formação e divulgação desta disciplina a uma escala global (hoje é parte do Monitor Group, co‑fundado por Michael Porter). Kees van der Heijden trabalhou o Planeamento por Cenários enquanto “Conversação Estratégica” e formalizou aquilo que Wack e Schwartz desenvolveram e apresentaram essencialmente de forma intuitiva.
O Planeamento por Cenários direccionou-se, com estes autores, para a interpretação das tendências, dos processos e das estruturas (vs. interpretação dos dados do mercado) e, sobretudo, para a disciplina mental de antecipação e desenvolvimento de “mundos”/contextos diferentes (vs. diferentes resultados no mesmo mundo), conduzindo a estratégias adaptadas aos fenómenos emergentes, às variáveis diferenciadoras dos Cenários e a uma diminuição da surpresa estratégica.
A Shell continua a utilizar os Cenários como metodologia de referência no seu planeamento estratégico. Uma versão pública dos últimos Cenários globais desenvolvidos pela empresa bem como um conjunto muito alargado de recursos na área do Planeamento de Cenários estão disponíveis em www.shell.com/scenarios.

[1] Para uma introdução teórica à Prospectiva e a apresentação das várias escolas de pensamento da disciplina ver Alvarenga, António e Soeiro de Carvalho, Paulo: “A Escola Francesa de Prospectiva no Contexto dos Futures Studies – da “Comissão do Ano 2000” às Ferramentas de Michel Godet” (disponível em http://www.dpp.pt/gestao/ficheiros/futures_studies.pdf).
[2] Art Kleiner: “The Man Who Saw the Future”, in “strategy + business”, Spring 2003.

sexta-feira, março 09, 2007

A Evolução do Futuro no Século XX: Daniel Bell e Herman Khan


O futuro é importante, quanto mais não seja porque é bastante provável que passemos grande parte da nossa vida lá.
A área do conhecimento e da acção da Prospectiva tem como foco fundamental essa preocupação com o futuro, não com a sua previsão, mas com a sua construção, utilizando para tal uma miríade de instrumentos metodológicos que passam pelos Cenários, a Análise de Tendências, a Análise do Jogo de Actores, etc..
Num trabalho recente do qual fui co-responsável[2] foram identificados como benefícios genéricos dos exercícios de Prospectiva uma mais fácil comunicação e coordenação entre stakeholders (exemplos de stakeholders: governo e outras entidades públicas, empresas, academia, ONG’s, sindicatos, mídia, escolas, cidadãos); a concentração no longo prazo; a construção de uma visão partilhada que facilite a focalização dos actores, gerindo incertezas, potenciando exercícios mais inclusivos e fortalecendo redes e interfaces (capital social); a contribuição para a definição de prioridades (num contexto de significativas restrições ao nível dos recursos e de crescente concorrência internacional); e a criação de compromissos (de participação e de implementação).
Construímos, no referido trabalho, seis “nebulosas” da Prospectiva (o termo justifica-se pela “fluidez” da classificação), autores e grupos de autores fundamentais para a compreensão da evolução da Prospectiva durante o século XX. A nossa princesa fará, neste e em próximos artigos, uma breve incursão por esses autores. Hoje apresenta a primeira dessas “nebulosas”, constituída por Daniel Bell e Herman Kahn.
A criação da “Comissão do Ano 2000” em 1965 pela “Academia Americana de Artes e Ciências” contribuiu decisivamente para a definição do campo de estudo da Prospectiva. Essa Comissão, liderada por Daniel Bell e que integrava muitos outros académicos de renome (Samuel Huntington, por exemplo), resultou numa publicação ainda de grande interesse na actualidade (reeditada em 1997[3]) que incluiu não só textos dos vários participantes como também extractos das discussões suscitadas no seio da Comissão. Entre outras ideias fortes, esta Comissão defendia a importância da análise das alterações estruturais na sociedade com impactos potenciais significativos a longo prazo. Adicionalmente, realçava a importância da decisão (tomada no presente) ter em conta “futuros alternativos”, especialmente no que concerne a assuntos críticos/chave.
Daniel Bell, o presidente da Comissão do ano 2000, impulsionou (e escreveu a respectiva introdução) uma das obras fundamentais de Herman Khan e da Prospectiva: “The Year 2000 – A Framework for Speculation on the Next Thirty‑Three Years” (1967)[4], obra editada pelo Hudson Institute (fundado por Kahn em 1961 depois de sair da Rand). Mas esse livro corporiza apenas uma parte das contribuições de Herman Khan para esta área do conhecimento, as quais abrangeram, entre outros, desenvolvimentos no Método dos Cenários, na aplicação da Análise de Sistemas à antecipação do futuro e na organização de investigação future-oriented de base interdisciplinar. Herman Kahn foi uma personalidade controversa (há quem diga que a personagem do Dr. Estranho Amor de Kubrick se baseou nele). Mais conhecido como Estratega Nuclear, foi também um Cientista Político e um Geo-estratega, tendo iniciado a sua carreira como Físico e Matemático na Rand Corporation. Sobre ele afirmaram, respectivamente, Donald Rumsfeld (i) e Raymond Aron (ii): (i) "Herman Kahn foi um gigante. Abordou assuntos de interesse público com criatividade e com a convicção, no caso dele correcta, de que reflexão e análise poderiam tornar o nosso mundo melhor”; (ii) “De facto, Herman Kahn, com todos os seus estudos científicos, as suas análise subtis, as suas experiências hipotéticas, continua a ser um reformador (...) que apela a uma revolução em conformidade com a revolução tecnológica.”


[2] Alvarenga, António e Soeiro de Carvalho, Paulo: “A Escola Francesa de Prospectiva no Contexto dos Futures Studies – da “Comissão do Ano 2000” às Ferramentas de Michel Godet” (disponível em http://www.dpp.pt/gestao/ficheiros/futures_studies.pdf).
[3] Bell, Daniel e Graubard, Stephen R. (eds.): “Toward the Year 2000 – Work in Progress”, The MIT Press, 1997.
[4] Disponível para download em http://www.hudson.org/files/publications/kahn_yr2000.pdf.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

O papel das autarquias no século XXI


A envolvente da actuação das autarquias portuguesas transformou-se profundamente desde a afirmação autárquica subsequente ao 25 de Abril de 1974. Dois aspectos desta transformação são, na minha perspectiva, particularmente relevantes:
(I) A mudança de foco na actuação autárquica. Realizado, na maioria dos casos, um forte investimento na infra-estruturação básica do território e ao nível dos equipamentos, o papel central do autarca é, cada vez mais, o de liderar um projecto de território, organizar redes e pólos de competitividade e contribuir para a atracção e a manutenção de empresas, projectos e pessoas.
(II) A crescente concorrência, quer a nível nacional (entre cidades, redes de cidades e regiões) quer a nível internacional, não só de cidades e regiões que nos são próximas (por exemplo, as espanholas) mas também de cidades e regiões de zonas do mundo distantes fisicamente mas que a globalização aproximou (exemplos: a ascensão da “fábrica e do escritório do Mundo” – respectivamente a China e a Índia; a abertura e a modernização das economias do Leste europeu).

É neste contexto que cidades e regiões europeias embarcam com cada vez mais frequência em projectos de Prospectiva Territorial capazes de criar uma Visão comum e mobilizadora para o futuro, de fortalecer sinergias, redes e interfaces (capital social), de mobilizar os actores do território e melhorar as relações entre os cidadãos e as autoridades regionais/locais, de facilitar a implementação de processos inovadores e eficientes, de definir prioridades estratégicas, de melhorar a imagem do território e de melhorar a capacidade de inteligência económica dos territórios (identificando riscos a minorar e oportunidades a aproveitar com o máximo de antecipação face à concorrência).

Exemplos a explorar: Projecto Vision 2025 para a região de Helsínquia (http://www.ytv.fi/ENG/future/vision/frontpage.htm), Parceria Estratégica de Birmingham (http://www.bhamsp.org.uk/), Gipuzkoa 2020 (http://www.gipuzkoa.net/g2020/es/index.html), Vision Dublin 2020 (http://www.dubchamber.ie/economy_item.asp?article=496), Cenários para a Região Urbana de Edimburgo (http://www.edinburgh.gov.uk/internet/environment/planning_buildings_i_i_/planning/planning_policies/CEC_a_vision_for_capital_growth_-_2020_-2040), Millénnaire3 (Grand Lyon) (http://www.millenaire3.com/), Plano Metropolitano Estratégico de Barcelona (http://www.bcn2000.es/ca-es/default_ca_es.aspx), Gotemburgo 2050 (http://www.goteborg2050.nu).

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Para onde olhar? – os três “tigres” Californianos: Silicon Valley, San Diego e Los Angeles


Ocupando grande parte da costa Oeste dos EUA, a Califórnia é um Estado nuclear no que toca à concentração de actividades baseadas no conhecimento, na inovação e na intensidade tecnológica. Conta com cidades, regiões e áreas metropolitanas entre as mais dinâmicas no que toca às indústrias e serviços de maior crescimento nas últimas duas décadas e uma grande percentagem de pessoas com a capacidade necessária para inovar e colocar no mercado novos produtos e serviços, criar emprego, sustentar os contínuos aumentos de produtividade e continuar a fazer da economia norte‑americana o “incubador gigante” de que fala Kaihla[2]. Neste artigo apresentam-se algumas características de três das principais sub‑regiões da Califórnia (Silicon Valley, São Diego e Los Angeles/Condado de Orange) e, no final, avança-se com alguns factores explicativos do sucesso californiano.
Silicon Valley é o pólo global mais brilhante no que toca à economia do conhecimento e à produção de tecnologia, sendo a maior concentração de empresas de alta tecnologia do mundo. Robert Metcalfe, um famoso empresário da área fundador da 3Com referiu: “Silicon Valley é o único sítio na Terra que não está a tentar encontrar uma forma de se tornar em Silicon Valley”. São José é a capital de Silicon Valley, sendo a área metropolitana dos EUA com maior percentagem de emprego quer em sectores ligados às Tecnologias de Informação (48,9%) quer em sectores de alta tecnologia (24,8%). São Francisco/Oakland, área do crescimento inicial dos EUA ligada à corrida ao ouro, é hoje líder mundial na alta tecnologia, capital de risco e biotecnologia e como a região mais atractiva dos EUA para trabalhadores qualificados em áreas da economia do conhecimento. São Francisco é a 1ª classificada do creativity index (grandes cidades) de Richard Florida com 34,8% de trabalhadores pertencentes à “classe criativa”. É um dos epicentros de talento dos EUA, com o seu pool de cientistas, engenheiros, artistas, criadores culturais, gestores e profissionais liberais.

Dotada de uma geografia única (entre o oceano, o deserto e as montanhas), São Diego é a 3ª classificada do creativity index (grandes cidades) de Richard Florida com 32,1% de trabalhadores pertencentes à “classe criativa”. Região urbana em claro crescimento, o condado de São Diego apresentou, entre 2000 e 2002, dos maiores ganhos em termos de empresas (mais 1100), emprego (30 000 novos empregos) e salários (aumento de 2 mil milhões de USD) de todos os EUA. Apesar de um quarto do emprego continuar a ser no sector da defesa, São Diego tem conseguido diversificar o seu tecido produtivo, tendo surgido clusters ligados às telecomunicações e às ciências médicas/biotecnologia. Este último tem-se assumido, nos últimos anos, como o principal motor de desenvolvimento.

Mais a Sul, a região de Los Angeles caracteriza-se por uma grande diversidade económica, não se concentrando tanto em empresas ligadas à Internet/dot‑com como o Silicon Valley nem na biotecnologia/defesa como São Diego. Esta diversidade dá maior estabilidade à Economia mas, por falta de um motor económico mais definido, limita a criação de riqueza e emprego em períodos de expansão de determinadas actividades. Coexiste, no entanto, com uma importância particular do entretenimento, aeroespacial, serviços às empresas e algumas actividades no sector dos bens não‑duradouros. O Condado de Orange (hoje mundialmente famoso através da série televisiva O.C.) passou de subúrbio e zona residencial de apoio a Los Angeles nos anos 70 e 80, ao 4º lugar entre as grandes áreas metropolitanas dos EUA em termos de percentagem de emprego quer no que toca a sectores ligados às Tecnologias de Informação quer no que toca a sectores de alta tecnologia. A força da indústria aeroespacial contribuiu em muito para o desenvolvimento de inúmeras empresas inovadoras em sectores como componentes para computadores, maquinaria industrial, equipamentos médicos e instrumentação científica.

Entre os factores que mais contribuíram para o sucesso da Califórnia nas actividades de alta tecnologia e criatividade podemos apontar (i) a qualidade das Universidades – aposta continuada dos governos estaduais no reforço de algumas grandes universidades, nomeadamente Stanford, Califórnia–Berkeley e Califórnia‑São Francisco. Por exemplo, a Universidade de Stanford participa no capital de centenas de startups – incluindo o Google, o maior motor de busca na internet do mundo – que utilizam tecnologias desenvolvidas na universidade; (ii) a disponibilidade de capitais graças à existência de capital de risco e da forte presença da banca de investimento; (iii) a atracção de investimentos públicos e de fornecedores de programas públicos na área da Defesa e Espaço – dos quais se destacam o centro espacial de Houston e os investimentos dos grandes contractors do Pentágono; (iv) a combinação única, em intensidade, de conhecimentos e competências em dois grandes percursos tecnológicos que marcaram os últimos vinte anos: Ciências da Vida e Ciências da Computação; (v) o ambiente cultural e estilos de vida favoráveis à inovação e à criatividade. São Francisco é um exemplo: sendo um dos principais centros criativos dos EUA, possui uma sólida mistura de indústrias de alta tecnologia com uma história rica, sendo muito forte a sua atractividade no que toca a trabalhadores qualificados em áreas da economia do conhecimento (por exemplo, o novo campus de São Francisco da Universidade da Califórnia dedicado à biomedicina deverá empregar 9000 investigadores); (vi) a posição geográfica que desde sempre facilitou uma abertura ao exterior e, em período mais recente, uma maior interacção com a Ásia, traduzida entre outros aspectos pela atracção de talentos da Índia e da China para as Universidades do Estado, muitos deles posteriormente envolvidos na criação de empresas inovadoras. (exemplo: em 2000 existiam em São José 3755 empresas detidas por indianos e chineses, correspondendo a um volume de negócios acima dos 23 mil milhões de dólares e a 88 000 empregos.[3]

[2] Paul Kaihla: Boom Towns, Business 2.0, Março 2004, pp. 94-102.
[3] Para uma análise aprofundada do caso da Califórnia e de outras regiões dos EUA ver Marques, I., Chorincas, J., Alvarenga, A. e Félix Ribeiro, J. M., “Prosperidade e Inovação nas Regiões dos EUA”, Informação Internacional - Análise Económica e Política, DSP-DPP (MAOTDR), Lisboa, 2006, pp. 9‑102.